quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Texto que se escapuliu da "gaveta"

Johann passeava pelas ruas da cidade. Deambulava pela zona dos antiquários, observando o meio envolvente com minúcia e pormenor. Sabia que procurava algo. O quê, não o podia enunciar. Nunca gostara de teorias cíclicas que determinassem o indivíduo. O inesperado deveria fazer parte do que é, e que por sê-lo se torna esperado depois de não o ter sido.

Errava tropeçando em cadeiras e absorvendo o húmido cheiro da madeira bafienta. A dado momento parou e dirigiu o olhar para a sua direita... e viu-o. Incólume e cercado por velharias. Estava imóvel. Aguardava o fim do prelúdio que não tardaria a dar lugar à fuga. Johann aproximou-se dele e reconheceu todo o seu potencial. Levou-o para casa.

Anoitecera... ambos se contemplavam num diálogo mudo que os preparava para a mútua incorporação. Johann principiou por tacteá-lo deslizando os dedos sobre os seus contornos. Reconheciam-se...

Finalmente Johann pegara no arco e uma primeira manifestação da união ressoou grave pelas paredes de pedra. O errante estava absorto durante o primeiro contacto auditivo que tivera com ele:

- Agora já sei que estás preparado para me ouvir. – dizia-lhe Johann – As formas existem, mas para as preenchermos deparam-se-nos infinitos caminhos que preenchem toda a necessidade de imprevisto que existe.

Sem perder tempo Johann agarrou firmemente o violoncelo e, ininterruptamente, brandia o arco nas cordas e o que era som transformara-se em imagem... e, nesse momento, ele viu: a sua mulher morria, o seu filho morria, viu a sua própria morte. No entanto, a alma continuava protegida da corrupção do que é corrompido. A sua alma possuía as cordas através do arco e as imagens sucediam-se: canhões trucidavam corpos de homens, de mulheres, de crianças; chamas queimavam casas e reduziam pessoas a cinzas. De pó foste feito, pó tornarás a ser. O desfile prosseguia: uma bomba, de grandes proporções, fazia desaparecer tudo o que existia nas periferias do local onde fora arremessada; crianças nasciam condenadas a não viver, fruto da maldição de serem inocentes. Em laboratórios criavam-se vírus mortíferos que dizimaram a espécie humana, inclusive os seus criadores, descendentes de Pandora. Era o advento do apocalipse: chagas e sangue. O que existia fora sugado pelo que não existia e chegou o juízo final. O juiz do trono branco queimou o livro dos mortos e a alma que animava o violoncelo desaparecera, mas como que por inércia, o instrumento prosseguia a sua incógnita melodia. Escreveu-se um novo livro da vida.

O violino desaparecera...

Um homem num paraíso, acompanhado por uma mulher, uma serpente e uma maçã. A expulsão. O irmão que matou o irmão. O recomeço de toda a maldição.

domingo, 14 de outubro de 2007

Luís Filipe Menezes

Eu bem disse que o homem não tinha sex-appeal. Se levasse uma tampa da Soraia Chaves, vá, ainda era como o outro. Agora, levar uma tampa de uma mulher como a Manuela Ferreira Leite é de ferir o orgulho a um gajo.

A mulher que vende poemas (mais uma vez)

Afinal o negócio, tal como eu o planeara, não se concretizou. Tudo porque me esqueci de andar acompanhado por um texto que servisse como moeda de troca por um poema da mulher que os vende no Chiado. Mas sempre aconteceu uma transacção. Acedi, finalmente (também já não era sem tempo), a comprar-lhe um poema, com direito a desconto e tudo (obviamente que não o irei reproduzir aqui, porque respeito os direitos de autor).Também não tenho nenhuma crítica a fazer, nem a pretensão de dizer se é bom, se é mau, se é de qualidade ou não.

Agora, a mulher que vende poemas já me reconhece, já me cumprimenta com dois beijinhos e tudo e até me disse o seu nome e me fala sobre a sua vida. E parece que afinal a poesia avulso é matéria tributável. Uns dias depois do "negócio" reencontrei-a mais uma vez. "Ultimamente não a tenho visto por cá". "É que ultimamente tem andado por aqui a polícia.", responde-me. "A polícia? Vender poemas é crime?", interrogo. "Mais ou menos, tenho de obter uma licença na Câmara de Lisboa para os vender e tenho de me colectar nas Finanças. Só o pedido da licença são 50 euros...". Afinal as poesias, e muito provavelmente as ficções, são matéria tributável.

Percebo agora porque é que a burocracia é inimiga da poesia e, em última instância, do pensamento. De qualquer das formas, se não tiver de pagar imposto de selo, ainda tentarei trocar o meu texto por mais um poema.

sábado, 13 de outubro de 2007

Regresso ao trabalho

Depois de umas férias prolongadas, Deus regressou ao trabalho. Olhou para o estado do mundo e disse: "And now, who cleans up the mess?". E meteu baixa psiquiátrica por tempo indeterminado.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Têm de dar o desconto. Afinal, parece que o autor deste blog está ou esteve apaixonado

Vagueio pela rua contemplando as pessoas que me olham sem me ver. A cada cara desconhecida associo a tua imagem. A recordação do que nunca foi invade-me sem eu dar conta. Imagino-me a passear contigo absorvido numa felicidade imensurável. Sonho-te devaneando no espaço do não feito e do não visto. Poderia dizer que te adoro, mas não me atrevo a manifestar algo que nunca foi nem nunca será. A perfeição da tua imagem aparece-me apenas porque tudo o que possa ser contigo só pode ser em pensamento. Qualquer tentativa de aproximação ao real é uma aproximação ao interdito. Não importa… contento-me em imaginar-te imaginando-me, em viver virtualmente o sentimento de que me vives, a ser em ti ilusoriamente.

domingo, 7 de outubro de 2007

O pensamento piegas da semana

Todos já escreveram sobre ele, mas ainda ninguém o conseguiu definir, caso contrário já não seria necessário escrever sobre ele. O roçar de um arco nas cordas, o soprar de um saxofone, o toque nas teclas de um piano, tentar agarrar a vida para ela não nos fugir... tudo isso é amor. E tudo isso junto não basta para o exprimir.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

O Dia da Implantação da República

Óptimo para coçar os tomates. Do que se conclui que ser-se republicano é ser-se perito em coçar os tomates.

domingo, 30 de setembro de 2007

A velha que anda sempre com um gato preto às costas

Conheceram-se quando ela ainda era ela, num tempo em que ela ainda tinha uma vida. Ele apareceu-lhe, ainda pequeno mas já felino, com os pêlos pretos a reflectirem os feixes de luz. Ela adoptou-o e ele assistiu à sua decadência. Agora, ela percorre as ruas da cidade, à procura de comida aqui e ali, para ela e, principalmente, para o gato. O felino viaja sempre às suas costas, como um timoneiro que lhe indica o destino, sabe-se lá para onde. Ela, cansada de definir o rumo da vida, deixou que fosse o gato a comandá-la, a guiá-la, colina abaixo, colina acima. Ela que agora parece um gato humano, ele que se assemelha a um homem felino. Ela apanhou-lhe os trejeitos, afugenta os pombos, e, há até quem diga, que mia... que lambe as suas próprias mãos. E caminha todos os dias, sem saber para onde. Não importa, o gato preto sabe. Sopra-lhe ao ouvido e ela consegue atribuir um significado a todos os sons que o gato emite. Já sobre a sua vida, os significados esqueceu-os todos. Talvez o gato preto se lembre...

sábado, 29 de setembro de 2007

Directas no PSD

A escolha não era muita. Mas hoje Sócrates vai dormir muito mais descansado. Afinal quem é que vai colocar o país nas mãos de uma versão sem sex-appeal de Santana Lopes?

E por falar em Santana Lopes, parece que a aplicação dos mind games de Mourinho à política podem trazer resultados positivos. Mas o antigo primeiro-ministro falhou no timing. Fossem as directas daqui a dois meses e Santana regressaria em grande. Talvez com Mourinho como presidente do partido houvesse oposição e Sócrates tivesse de começar a mostrar resultados para apresentar em 2009.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

O Mito de Sísifo

Acordar. Espreguiçar. Tomar o pequeno-almoço. Fumar um cigarro. Tomar banho. Vestir. Andar. Beber café. Andar outra vez. Descer escadas. Apanhar o metro. Inventar pensamentos no metro. Despertar do sono criativo e sair do metro. Subir escadas. Subir outras escadas (mas estas são mais fácéis porque rolantes). Andar. Chegar ao trabalho. Sentar à frente do computador. Produzir. Pausa para almoço. Sentar novamente à frente do computador. Produzir. Sair do trabalho. Descer escadas rolantes. Descer escadas apenas. Apanhar o metro. Inventar pensamentos no metro (caso o dia de produção não tenha liquefeito a mente). Sair do metro. Subir escadas. Chegar a casa. Suspirar. Fazer jantar. Jantar. Ver programas estúpidos na televisão. Dormir.

Repetir tudo no dia seguinte e no dia depois de amanhã e em todos os dias depois desses. Ser Sísifo no século XXI é mais difícil que rolar eternamente uma pedra de mármore até ao cume de uma montanha.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

O dia em que o tempo tirou férias

Houve um dia em que o sol não nasceu e em que a manhã não apareceu. As pessoas não acordaram para cumprir as suas rotinas diárias, os que não se deitaram ficaram imobilizados num sono profundo, petrificados nos passeios das ruas, os pássaros não cantaram, os jornais ficaram retidos nas gráficas, com os operários colados às máquinas, presos no tempo que deixou de o ser. O lixo não apodreceu e os cadáveres já não se decompunham. O vento não soprou e a terra, essa, não girou... permaneceu imutável como se todo o Universo tivesse sido congelado. O curso dos rios parou, as ondas deixaram de embater na areia das praias e nas rochas das falésias... Tudo deixou de ser tudo e passou a ser outra coisa qualquer que ninguém poderia saber o que era. As nuvens ficaram fixas no céu, estáticas como se tivessem sido pregadas num papel de cenário sem princípio nem fim. Os corações cessaram os seus batimentos e os cérebros não emanaram mais infinitos impulsos magnéticos (ou serão eléctricos?).

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Fundamentação da Merdafísica dos Costumes

Podia ser uma obra de Kant, mas parece que o filósofo alemão era demasiado asseado para escolher este título para um tratado. Preferiu escolher Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Ora, se os costumes estão para além do mundo físico, como é que poderão ser Merdafísica? Porque cumprir o dever pelo dever ou agir em conformidade com o dever guiados pela razão pode, muitas vezes, dar merda. E não só no sentido metafísico do termo. Ok, confesso... é um post triste e algo merdoso.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Outra vez a mulher que vende poemas

Já me reencontrei mais duas ou três vezes com a mulher que vende poemas. Ela no princípio aparenta não me reconhecer, mas depois lá se lembra: "Ah pois, você é o tal que não tem dinheiro para comprar poemas". Ao que eu não sei como reagir, porque se por um lado não faço tenções em gastar dinheiro a comprar poemas avulso, por outro ninguém gosta de se ver confrontado com a sua condição de pelintra.

Depois de várias noites sem dormir, lá pensei em arranjar uma solução mais ou menos honrosa para a próxima vez que a mulher me tentar vender um poema. Proponho-lhe aquilo a que nos mercados financeiros se chama um swap, ou, mais simples, uma troca (eu utilizo a gíria económica porque estou a encarar este assunto como se de uma grande transacção em bolsa se tratasse). E foi isso que aconteceu hoje. Saí do metro do Chiado e vi-a. Ainda hesitei, mas acabei por avançar resoluto na sua direcção. Ela dirigiu-se para mim e nem a deixei perguntar se eu gostava de poesia. Disse logo: "Já nos conhecemos". E ela: "Ah pois, você é o tal que não tem dinheiro para comprar poemas". Não me deixo amedrontar: "Pois, mas, se quiser, da próxima vez eu trago um poema meu e trocamos". Resposta: "Tudo bem, traga. E se eu achar que for bom trocamos". E eu, que pensava ingenuamente que um poema é um poema e pronto, fiquei assim um pouco para o atrapalhado. É que parecendo que não, a minha poesia é assim a dar para o fraquinho. Vá, ok, vou ser sincero... É assim um bocadinho muito má.

Tinha de pensar num plano de recurso. E rápido. Lá lhe perguntei: "E pode ser prosa?". Ela disse que sim, até porque escreve prosa poética e tudo. Fiquei mais aliviado e ficou apalavrada a altura do "negócio". Ou este Sábado, ou durante a próxima semana. Eu estava a pensar em levar para a troca o texto da "Mulher que Vende Poemas". Mas, se me quiserem ajudar, aceito sugestões. E tenho de publicar um "o Pensamentos SGPS errou". Parece que afinal o poema só custa dois euros.

PS - Peço desculpa pela ausência mais ou menos prolongada e por não ter acompanhado os vossos blogues (vou tratar do assunto esta semana).

PS I - Desafio-vos a irem ao Chiado este Sábado ou durante a próxima semana para comprarem um poema à tal mulher, ou então, para lhe sugerirem trocas. Mas, apesar de ela me dizer que iria estar por lá naquela altura, não posso garantir que efectivamente isso aconteça.

PS II - A Gasolina farta-se de me mimar. Agora distinguiu-me com um Certificado do Blog. Já estou a ficar sem jeito. Mas são pessoas como ela que nos estimulam a escrever e a pensar mais e mais. Obrigado.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Crónicas Insanas I

Zé era um rapaz forte. Admirado por todos os da aldeia, cobiçado pelas raparigas e tudo o mais. Zé, como tantos outros, teve o azar de ir às sortes. Pior, teve o azar de as sortes lhe terem batido à porta, levarem-no para Lisboa e embarcaram-no num barco. Tiraram-no do barco e despejaram-no na Guiné. Zé só por duas vezes tinha saído da sua aldeia, para fazer o exame da quarta classe e para ir às sortes. À terceira foi de vez. A sorte levou-o a ver mundo. Levou-o a ver a capital e a galgar o mar, esse elemento que nunca vira.

Mas as sortes são matreiras. Despejaram-no numa terra de guerra, onde tinha de matar para não morrer. Mas Zé não desanimava, apesar do barulho das armas e da guerra e dos silêncios forçados no mato lhe revolverem os pensamentos. Era corajoso e, para além disso, as moças escuras não ofereciam grande resistência aos seus avanços libidinosos. E, quando se faziam mais difíceis, Zé não se deixava amolecer. Afinal de contas um homem com uma arma impõe respeito e, pior que isso, perde toda a inocência e ganha toda a perversão.

Até ao dia em que uma moça qualquer que violara lhe propôs uma sessão de sexo, onde lhe percorreu todo o corpo, mas todo mesmo, com umas ervas esquisitas. Zé não se importou. Era exótico até. E imaginava que nenhuma moça da aldeia seria despudorada o suficiente para igualar aquela moça de mamas rijas como granito.

Dias depois Zé começou a ter dificuldades em mijar. "Foda-se, pareço que estou a mijar vidros porra!", exclamava cada vez que tinha de se aliviar. Entretanto a guerra acabou e Zé regressou à aldeia. Mas já não era mais o rapaz forte, admirado por todos, cobiçado pelas raparigas e tudo o mais. Foi são, regressou insano. Comentava-se até que o "coiso" de Zé tinha caído por causa das mezinhas das africanas. E ficou conhecido como o "Zé das Telhas", a quem todos pagavam minis no clube recreativo e que, sempre que ouvia o barulho de um avião, fugia de casa em pânico e a gritar: "Estão a roubar-me as telhas de casa!"

Mas nunca ninguém se importou muito com isso. Tinham mais preocupações que as telhas do Zé e, assim como assim, a sua casa não era bem uma casa. Parecia mais um palheiro que outra coisa.

domingo, 19 de agosto de 2007

Uma questão ocular

Olhas-te ao espelho,
A cara enrugada pelo tempo,
A pele ressequida pela erosão das horas.

Olhas a vida,
Sabes que a existência
Será sempre o que foi.

Olhas a tua mulher,
Recordas-te tenuemente dos laivos de paixão
Que te invadiram nos teus tempos de juventude.

Olhas para dentro de ti,
Para além das tuas entranhas
E o que vês?

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Apontamentos sobre a Igreja Global da Democracia de Deus, a nova seita da moda

Pastor
Se Deus pôs a morte no meu caminho, foi para mostrar que Ele tem a capacidade de ressuscitar, tá entendendo? É por isso que existem nódoas na roupa, para mostrar a eficácia dos detergentes… Se existe morte, é para provar que existe ressurreição e que Cristo ressuscitou ao terceiro dia…

Agnóstico
Mas eu nunca vi um cadáver deixar de ser cadáver…

Pastor
Ah moleque, você não tem mesmo fé nenhuma, pois não? Se deixou de haver ressurreições foi porque Deus se esqueceu de passar pelo notário para certificar as habilitações e alvarás dos seus representantes, tá entendendo? A I. G. D. D. é a Igreja Global da Democracia de Deus! Igreja porque somos uma igreja, global porque estamos em tempo de globalização (se bem que em África não haja água potável), democracia porque houve uma revolução lá no paraíso celeste, um regicídio e aboliram a monarquia e aquilo passou a ser uma democracia, e Deus continua sendo Deus.

Agnóstico
Mas se houve um regicídio no céu, como é que é possível que Deus tenha sobrevivido?

Pastor
Pertinente a sua questão. Mas Deus é imortal, assassinaram ele, mas ele se ressuscitou. Aí ele encabeçou o primeiro governo, depois o segundo, o terceiro e por aí adiante… Deus, Deus, Deus, Deus…

Agnóstico
Porque é que só estás a invocar o nome de Deus?

Pastor
Ué! Tou invocando Deus. O primeiro que foi rei, o segundo que foi chefe de um governo de esquerda, o terceiro que foi chefe de um governo centrista e o quarto que foi chefe de um governo de direita… Deus! Deus! Deus! Deus! Segundo o decreto-lei celestial aprovado em conselho de arcanjos numa data qualquer perdida na eternidade, e usando os poderes que me foram delegados peço que esta tijuca loura seja ressuscitada…

Secretária de Deus
Vou enviar o seu requerimento para o tribunal da relação dos santos, que irá submeter o seu parecer ao tribunal constitucional dos apóstolos, que irá enviar o acórdão para o conselho angelical de magistratura, que enviarão a sua sugestão para o bastonário da ordem dos arcanjos (só para não haver frissons mediáticos), e finalmente o caso será apreciado pelo supremo tribunal. O veredicto chegará depois a Deus que o analisará, e irá deliberar se veta ou não a decisão, ou se interpõe recurso…
(to be continued)

domingo, 12 de agosto de 2007

Retratos de vidas impossíveis de retratar III (conclusão)

Retratos de vidas impossíveis de retratar I
Retratos de vidas impossíveis de retratar II

– E sabes que mais? Escuta bem o que te vou dizer…Só um amigo é que te diria o que te vou dizer…

– Diz…

– Estás a ver as pedras dos passeios?

– Sim…

– Aquelas brancas e pretas…

– As brancas sei, as outras não são bem pretas, são mais azuis escuras…

– Preto ou azul-escuro tanto faz, o que importa é que umas são claras e outras escuras, o fundamental é o contraste, nada mais…

– Está bem…

– Quando andares nos passeios nunca pises as pedras pretas…

– Porquê?

– MIIIIIIIIIIIIINA!!!!


– Obrigado pelo conselho…

– Aquilo houve gajos que vieram de lá completamente doidos e que fugiram, mas eu nunca fugi…

– Acho que precisas de te tratar…

– De me tratar eu? EU... EU... Nem pensar. Eu não preciso de me tratar, também nunca precisei de fugir ouviste?

– As pedras escuras da calçada não são minas…

– Ai isso é que são… são… eu sei que são… a minha filha… morreu assim… pisou uma pedra dessas…

– Não, não pisou…

– Mas tu nem conheceste a minha filha?

– Infelizmente conheço…

– Também me saíste cá um badameco… conheceste a minha filha e dizes infelizmente?

– Fui eu que a matei… atropelei-a…

– Atropelaste agora… ela pisou uma pedra e explodiu…

– Atropelei-a… já te disse… não adianta fugires às coisas…

– Eu nunca fujo a nada, ouviste? Atropelaste a minha filha? Se dizes que sim eu não fujo a isso, mas eu sei que ela pisou uma pedra preta da calçada e que morreu… achas que eu acredito que o melhor amigo da minha infância a atropelou? Pelo Amor de Deus!!

– Mas eu atropelei-a…

– Pagas tu a conta, não pagas? Afinal não foste à guerra…

– Vais-te embora?

– Sim…

– Mas eu estou a dizer-te que atropelei a tua filha…

– Já te disse que ela pisou uma pedra da calçada… Porta-te bem maçarico…

– Eh pá… não fujas…

– Já te disse que nunca fugi e não era agora que o iria fazer…

in Café por Acaso

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Sensibilidades

Insensível ao toque... insensível aos sons... insensível a tudo o que não se vê, insensível ao invisível, ao que só se consegue percepcionar quando se ama, ao que só existe se existir sentir, à vida, aos outros, às sensações, às tristezas, às alegrias, à saudade e ao raio que o parta também.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

A Assembleia Geral do BCP

Que os portugueses são danados para brincadeiras, não é novidade nenhuma. D. Afonso Henriques chateou-se e decidiu andar à batatada com a mãe. Depois de expulsar os espanhóis, D. João I estava aborrecido e decidiu invadir Ceuta. O infante D. Henrique que não tinha nada com que se entreter pôs-se a inventar embarcações e instrumentos de navegação. Já no século XX, o engenheiro Jardim Gonçalves, num dia em que estava mais aborrecido resolveu criar um banco, vá, um banquinho, assim uma coisita humilde.

Brincadeira atrás de brincadeira, muitas delas meritórias é certo, o engenheiro lá conseguiu transformar o tal banquito na maior instituição financeira do país. Quando se fartou um bocado do brinquedo que criou, lá decidiu convidar um amiguinho para lhe fazer companhia nas brincadeiras. Paulo Teixeira Pinto, o tal amiguinho, aproveitou o brinquedo para se lançar à Roménia e ao BPI. Não correu lá muito bem e Jardim Gonçalves quis o brinquedo de regresso para ele com receio que Teixeira Pinto causasse estragos. Os dois procuraram apoios, de gente endinheirada que também quer brincar um bocadinho (então o Berardo, esse é mesmo danado, até quer jogar Championship Manager a sério e tudo). Resultado: a brincadeira pode custar milhões aos accionistas (e há por aí alguns que se queixam que o banco andou a brincar com eles) e pode afectar milhões de pessoas que confiam no tal banquito para guardar as suas poupanças. Com tantos adiamentos e retiradas de pontos a questão que fica é: Ninguém tem mão no BCP?

terça-feira, 31 de julho de 2007

Retratos de vidas impossíveis de retratar

(continuação)

– Nunca saberás o que aquilo foi… houve gajos que vieram de lá sem uma quarta-feira… mesmo do meio para as pontas… houve um gajo da minha companhia, acho que era o Dias, ou seria o Correia? Já nem sei… o gajo meteu-se lá com uma preta, nem imaginas… a gaja besuntou-lhe o coiso com umas ervas manhosas e aquilo acabou por cair… Dizem que agora o gajo endoideceu…

– Pudera…

– Quando passa um avião o gajo foge de casa a gritar que lhe estão a roubar as telhas…

– E a ti?

– A mim o quê?

– Aquilo não te fez impressão?

– Eh pá, claro que fez… Há coisas que fiz que nunca contei à minha mulher… Há coisas que ainda hoje sonho com elas… mas é a vida… o que vale é que nunca fugi, ouviste bem? Nunca fugi…

– Chegaste a matar alguém?

– Merda de pergunta… se um gajo vai à guerra tem de matar…


– E não sentes remorsos?

– Remorsos? Eu… que nunca fugi? Há lá agora espaço para remorsos…

– Mas eu sinto…

– Bem me parecia… sentes remorsos por não ter ido à guerra?

– Não…

– Então?

– Matei uma mulher…

– Deixa lá isso, se soubesses as que matei só por não quererem ir para a cama comigo…

– A sério??!!

– Claro que não… estava só a brincar

– Mas mataste gente?

– Já te disse que sim... Muita… Houve uma vez que nos mandaram enterrar pessoas de uma aldeia até ao pescoço e os oficiais começaram a fazer pontaria às cabeças rentes ao chão com pedras e passaram-lhes com os jipes por cima… julgas que isto sai da cabeça de um gajo? Julgas que não choro? Às vezes choro mas nunca fugi… quero que saibas que nunca fugi…

– Sim… já sei que nunca fugiste… Mas eu não consigo viver com a morte de alguém na minha consciência…

– Mas mataste de propósito?

– Não… ia a conduzir e atropelei uma mulher… ofusquei-me com a luz do sol e atropelei-a… não me recordo muito bem desse momento, só me lembro de um fino fio de sangue escorrer-lhe pelo lado direito da boca…

– Já pensaste que se calhar não tiveste culpa?

– Não importa… a morte daquela mulher não me deixa dormir… o sentimento de culpa é tanto que parece que o mundo vai acabar…

in Café por Acaso

sábado, 28 de julho de 2007

Eu comi a tua gaja... lol


Sempre existiu aquilo a que alguns chamam de "muletas" na linguagem. Com a democratização da comunicação multimédia apareceram inúmeras dessas "muletas" nesse contexto linguístico, sendo que, na minha humilde opinião, o "lol" é a mais engraçada de todas. Primeiro, porque o "lol" se utiliza quando as coisas aparentam ter piada. E em segundo, o "lol" pode safar-nos de todas as complicações comunicativas que aparecem via internet.

Assim, podemos dizer a maior barbaridade que se a seguir digitarmos as três letrinhas mágicas (e não estou a falar da palavra mãe) a barbaridade passa a graçola e é perdoada. Por outro lado, a dimensão comunicativa da internet não permite ter uma percepção real da reacção dos nossos interlocutores. Não sabemos se estão a achar piada ou se estão a ficar chateados com a conversa, daí que, pelo sim pelo não, convém utilizar compulsivamente o "lol".


E agora, depois de exposta a tese, um exemplo prático (só para dizer que sei construir textos a defender uma ideia). Estamos a comunicar no MSN com um amigo. E dizemos-lhe: "Sabes o que aconteceu ontem?". Resposta: "O quê?". Continuação: "Comi a tua gaja"...

Naquela ínfima fracção de segundo em que o nosso interlocutor fica mentalmente paralisado (a pensar se é verdade ou se é mentira que lhe comemos a gaja e em que o cérebro dele emite estímulos para ele pegar no carro e vir a nossa casa esvaziar uma caçadeira nos nossos abençoados miolos) digita-se o "lol". Ao que ele irá responder: "lol". E podemos continuar a servirmo-nos da namorada do nosso amigo à vontade, tão à vontade como nos servimos do "lol". E como o texto não tem nem interesse nem piada, a ver se não me esqueço de o acabar com um grande LOL.

terça-feira, 24 de julho de 2007

Crónica de um cerco medieval e infernal

Continuação do Assassino da Lama

O Jovem, filho do Gordo, cercou Vitry. A fisionomia das pessoas evoluíra de medo para pânico. Continuava alheado ao que se desenvolvia à minha volta e mortificava-me pela fome. Não, eu não era digno de comer os mantimentos que escasseavam às pessoas. O meu olhar recaía constantemente sobre as pedras dispostas no chão, tentando perceber-lhes uma vontade que me permitisse afirmar que fora uma pedra que assassinara por sua vontade e que não fora a minha vontade a matar através de uma pedra. Inútil…

A situação em redor de Vitry parecia complicar-se. As defesas da cidade revelavam-se demasiado frágeis para deter a impetuosidade do Jovem. Finalmente, tomava consciência do que se passava à minha volta e pela primeira vez questionei-me: “Será a morte bem-vinda?”. Não, não podia morrer ali, era demasiado fácil morrer e não viver com a culpa a mortificar-me a alma. Terá sido esse o meu verdadeiro pensamento, ou seria apenas um pretexto para lutar cobardemente pela sobrevivência? Todos nós nos enganamos a nós próprios…

Pensei em evadir-me da cidade, mas com toda a certeza seria impossível escapar-me por entre o cerco do Jovem. As pessoas mais frágeis refugiaram-se na igreja, mas pareceu-me demasiado cobarde e impuro partilhar um abrigo divino, quando albergava em mim recordações de acções sacrílegas. Ajudar os locais e lutar? Não, não podia morrer (ou será que não queria?). Escondi-me num estábulo e cobri-me de feno para me ocultar de qualquer perigo.

As tropas de Luís entraram na cidade chacinando as forças resistentes. Incendiaram as muralhas e o fogo propagou-se às casas e das casas à igreja. Os gritos apocalípticos abafaram as preces aflitas, o ar fora invadido pelo cheiro da madeira queimada. O meu coração pulava e bátegas de suor percorriam o meu corpo. Ao cheiro da madeira ardida juntava-se-lhe um outro que tornava a respiração difícil e horrível – o da carne consumida pelo fogo. Os gritos tornavam-se-me imperceptíveis silenciados pelo turpor em que o meu corpo entrara. Fugi do estábulo, visto que o meu esconderijo principiava a ser consumido por labaredas dançantes. Dirigi-me para a rua e deparei-me com um cenário infernal: grande parte da cidade ardia, incluindo a igreja onde milhares se haviam refugiado.

Naquele momento todos os meus pensamentos cessaram, o omnipresente remorso fora para não sei onde e o mundo parou. A minha visão abarcou soldados mortos, espalhados pelo chão como pedras inertes. Permaneci numa quietude intemporal, estático e horrorizado.

As tropas reais passavam por mim, mudas, ignorando-me. Nos rostos dos soldados percebia-se um horror que os tornava cabisbaixos apesar do triunfo. Perguntei a um deles apontando para a igreja “Eles estavam lá dentro?”. O homem acenou afirmativamente com a cabeça e prosseguiu a sua silenciosa marcha.

Primeira nota mais ou menos editorial do blog

Pensei duas vezes antes de escrever este post justicativo e explicativo. Em primeiro lugar, quero agradecer a todos os que visitam este espaço e, de uma maneira ou de outra, ajudam a transaccionar ideias (que é esse o objectivo deste blog). Depois de ter analisado a maior parte dos comentários feitos aos posts sinto-me na necessidade de referir o seguinte: os textos constantes no blog não dizem respeito ao meu estado de espírito. A metodologia para os criar é simples: trata-se de ficcionar narradores, personagens e acontecimentos. Existe também o caso, como o da mulher que vendia poemas, que partem da minha observação do real, mas em que o protagonista não sou eu. Depois, existem ainda alguns (poucos) artigos de opinião, que ou correspondem à minha maneira de ver as coisas ou a uma forma provocatória de as abordar.
Portanto, quando lêem um texto aparentemente triste, não quer dizer que eu o esteja. Não há motivo de preocupação. Aqui não se procura evidenciar a verdade, mas sim criar situações verosímeis, com o objectivo de transaccionar ideias e reflectir sobre o mundo e, especialmente, sobre os outros.

Obrigado por tudo.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Alcoólicos Anónimos. Hoje é quinta-feira

Quando tudo nos parece fugir… quando tudo o que nos pertence parece ser tragado pelo turbilhão do real… quando fazemos com que tudo se desvaneça… que tudo desapareça… quando fazemos com que nós deixemos de ser nós… quando já nada nos aparece para nos dar uma migalha de felicidade… quando todos os laivos de alegria nos aparecem interditos… vedados…

Adormecer eternamente com uma garrafa de absinto como mortalha…
Adormecer eternamente… adormecer eternamente da mesma forma como se viveu… em solidão… afogado não sei bem em que tristezas e em que mágoas… Tomara que adormeça sonhando… mas hei-de adormecer rodeado de nada, porque tudo é vazio.


Adormecer eternamente afastado de tudo, afastado da própria vida, afastado dos que amei, porque quando se adormece como eu hei-de adormecer é porque já não existe a possibilidade de se amar seja o que for.


Adormecer eternamente com uma garrafa de absinto como mortalha…

Adormecer em solidão… Adormecer por opção…


Adormecer eternamente amortalhado numa garrafa de absinto…

Nota: depois de duas semanas de ausência das reuniões de Alcoólicos Anónimos devido a um dessaranjo cerebral, esta é a última sessão dos AA narrada por este blog.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

O fragmento de teoria literária da semana

Em relação à ficção: estará dentro ou fora da realidade? E a realidade, estará dentro ou fora da ficção? Existirá uma relação entre o real e o ficcionado? Podemos encarar o real como o que nos rodeia; mas a ficção, terá ela uma relação com o real, mesmo que essa relação não seja mais que uma relação de antonímia? Se assim fosse poderíamos definir a ficcionalidade como não sendo o real. No entanto, se a relação de antonímia entre real e ficção fosse verdadeira, realidade e ficção seriam indissociáveis. Mas será mesmo assim?

Encarando o real como um inferno cruel, onde cada acção representa um sujar de mãos para a existência de quem a executa, poderemos questionar o seguinte: sendo o real constituído por factos cruéis, será a efabulação/ficção um refúgio?

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Retratos de vidas impossíveis de retratar

– Já não nos víamos desde aquele dia em que fomos às sortes…

– E em que as sortes separaram as nossas vidas…

– Ouve lá… Sempre é verdade aquela história que o pessoal contava?

– Que história?

– Que partiste um braço de propósito para não ir à guerra?

– Isso é uma história tão real como as histórias da nossa infância…

– Como assim?

– Sei lá… por exemplo, lembras-te daquela história do Domingues?

– Se me lembro pá, se me lembro… Diziam que o gajo tomou banho numa lagoa da serra em pleno Inverno só para poder afirmar que a água estava fria…

– Exacto… Estiveste lá? Viste?

– Não…

– Eu também não…

– E?

– Quer dizer que não podemos saber se a história é realmente verdadeira…

– Onde é que queres chegar com esse palavreado?

– Que ninguém pode saber se eu parti um braço propositadamente para não ir à guerra…

– Sim está bem… Mas é verdade ou mentira? Conhecendo-te como te conheço sou capaz de jurar que é mentira…

– Mas é verdade…

- Verdade? Ó Castro, não pensei que fosses gajo para fazer isso…

– Também nunca pensei que fosses gajo para ir à guerra só porque sim…

– Eh… calma aí…

– Vamos mudar de assunto… não nos víamos para aí há trinta anos e devemos ter assuntos mais divertidos para partilhar.

– Tens razão… mas fugires da guerra… como é que aguentaste ficar aqui e saber que os teus camaradas estavam a morrer em África? O Brandão, o Costa, o Melo, o Magalhães, o Silva, o Fernandes, o Gama, até o duro do Domingues… ficaram lá todos e tu aqui a assistir a isso, sem fazer nada?

– Talvez tenha sido o acaso que me fez ficar…

– Badamerda para o acaso… não vou nessa cantiga. Se fugiste deliberadamente da guerra foi por opção, não por acaso. Se tivesses tido o azar de nascer sem um tomate aí sim seria um acaso… mas tu optaste por não ir à guerra e por deixar morrer os outros sem ti… tu optaste…

– Talvez tenhas razão. Mas encontrarmo-nos depois de todos estes anos foi um acaso…

– Sim, mas isso não importa, isso não vai mudar as nossas vidas…

– Viste-os morrer? Aos nossos? Ao pessoal da nossa terra?

– Só ao Domingues e ao Costa… Os outros não estava com eles… Ainda hoje sonho com isso… O Domingues e o Costa. Lembras-te quando fomos com eles roubar o vinho ao vigário?

– Se me lembro… bem divertido e foi bem feito…

– Pois foi… o vigário era um grande filho da puta… o vigário é que devia ter pisado a merda da mina que o Costa pisou…

– O Costa morreu por causa de uma mina?

– Ele e o Domingues… Estavam a disparar contra a gente e desatámos a correr para um sítio onde nos pudéssemos esconder. O Costa colocou a pata em cima de uma mina e parou. Ficámos todos em pânico… sabes o que é que o Domingues fez? Tu sabes como era o Domingues… mandou-nos continuar a correr e foi pelo meio do fogo cerrado até ao pé do Costa…

– Também fugiste?

– Eu não fugi… só procurei um local mais guarnecido para poder cobrir o Domingues… Eu não fugi, nunca na minha vida fugi a nada… O Domingues tentou desarmadilhar a mina… e o Costa ali quietinho como a estátua do Cristo-Rei e as balas a passar de um lado para o outro. Estávamos todos a rezar para que o Domingues conseguisse tirar dali o Costa… Depois uma bala atingiu o Costa e buuuummm… ficaram os dois esfrangalhados…

– Porra… Ao menos tu safaste-te!

– Safei-me mas não fugi… nunca fugi…

– Claro…

– Tu não sabes o que aquilo foi… os gajos que não estiveram lá não podem saber… podem escrever-se muitos livros e fazer muitos filmes que os gajos que não estiveram lá nunca poderão saber o que aquilo foi…

in Café por Acaso

domingo, 15 de julho de 2007

O assassino da lama

Caminhavas delicada por uma viela com um passo tão harmonioso que os teus pés não se enterravam na lama. Um sujeito acercou-se de ti agarrando-te e forçando-te a entrares num beco deserto. O sangue começou a correr rápido pelas minhas veias e segui-vos. O homem queria violentar-te, queria conspurcar o corpo sagrado em que eu desejava concretizar os meus sonhos e as minhas abstracções. Rasgava-te a roupa, acompanhando a tentativa forçada de coito com frequentes murros na tua face… O som dos teus gritos ressoava em mim e fui invadido por uma raiva nunca antes sentida.

O meu olhar deparou-se com uma pedra, diferente das outras não só por ter uma extremidade aguçada, mas principalmente por senti-la como um prolongamento do meu corpo (anos depois aprendi que cada pedra possui a sua própria natureza). Afastei o sacrílego da tua carne e principiei a desferir-lhe inúmeros golpes no crânio e no rosto, assistindo maliciosamente à lenta desfiguração da face da besta.

Sentia luxúria ao observar-lhe o sangue jorrando pela face, ensopando-se na roupa e maculando o chão enlameado. O sangue a jorrar com a intensidade das águas das enxurradas… provocadas por temporais repentinos. Mesmo depois do homem desfalecer, prossegui com os meus movimentos selváticos que lhe dilaceravam a carne meia viva meia morta, desgarrada, nacos que já nem sequer a um cadáver pertenciam. E a tentação da carne foi castigada com a flagelação da carne.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Paixões instantâneas

Andar de metro tem poucas coisas positivas. Tem a vantagem de nos colocar mais rápido num determinado ponto da cidade, mas, como nem tudo é perfeito, obriga-nos a subir e a descer escadas e mais escadas e a termos de passar por portas estreitas que parecem saídas da terreola do Frodo Baggins, em tamanho, não em estética, diga-se.

Outra das vantagens é a viagem de metro não ter pontos para distrair a nossa atenção. Não há paisagem para ver e, na ânsia de não se entrar no desespero de nos sentirmos vazios e autómatos, tentamos a todo o custo focar a nossa atenção ou em algum pensamento, ou em algum passageiro desconhecido e que tenha características peculiares. Tentamos radiografá-lo e imaginar-lhe uma vida, tornando-o assim um passageiro do nosso pensamento. A partir dessa altura já não se encara o outro como um outro, mas sim como uma personagem criada por nós num romance imaginário. É um exercício estimulante.

Mas mais estimulante ainda são as paixões metropolitanas, aquelas que duram os dez minutos que o metro demora a chegar da Baixa-Chiado a Sete Rios. Por vezes, deparamo-nos com mulheres que através de um gesto, de um trejeito ou de um olhar materializam aquele je ne sais quoi que não sabemos o que é, mas que nos agrada. E aí, começamos a imaginar tudo o que poderia ser mas nunca será, a cruzar e a desviar olhares. É como se contemplássemos uma obra prima que nunca será nossa, porque nunca sairá do museu. Esses instantes fazem-nos sonhar... e há quem diga que é bom sonhar e eu acredito.

Saídos do metro, a imagem desvanece-se e a paixão instantânea dissolve-se. Nunca mais nos lembramos dela, a não ser que tenha havido um olhar sorridente cravado na memória até sairmos da estação. Paixões subterrâneas que se apagam quando chegamos à superfície.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Diz que este blog já proporcionou momentos de excelência

A gasolina, do Flor da Palavra, parece que teve um daqueles momentos de insanidade temporária e resolveu galardoar aqui o Pensamentos SGPS como "um blog de excelência", que se destaca - e cito - "pelas palavras, pela música, pelas reflexões, pelas imagens, pelos desafios, pela solidariedade, pela vida partilhada". Parece que a iniciativa partiu do http://momentusmomentus.blogspot.com/. Eu por cá, apesar de continuar a achar que no futuro ela poderá alegar insanidade por esta decisão, agradeço a generosidade da Gasolina.

E parece que eu também conheço alguns blogs que se enquandram naqueles requisitos. Basta consultar a lista de links. Todos os que lá estão merecem esse reconhecimento (não sei se os posso nomear todos, porque não sei muito bem como funcionam estas coisas, mas é essa a minha vontade e dizem que a vontade pode muito e eu acredito).

terça-feira, 10 de julho de 2007

Inédito: o autor deste blog perde a cabeça e tenta fazer um sucedâneo de poesia

Eu quero que saibas que sem ti
Não existe céu nem terra,
Não existem estrelas nem mares,
Não existe fogo nem água.

Quero que saibas que sem ti
Não existe beleza nem afectos
Não existem lágrimas nem sorrisos
Não existe felicidade nem saudade.

Quero que saibas que sem ti
Não existe vida nem morte,
Não existe crime e castigo.
Não existe amor. Não existe ódio.

Quero que saibas que sem ti
Nada existe

Mas falemos de nós,
De nós em tempos onde não existem plurais.
Falemos de olhos,
Mas estamos em tempos onde não existem olhares.

Falemos de amor,
onde o chão não se pisa
o céu não se vê
as folhas não caem
o mundo não é
o som não se ouve
o mar não se cheira

Falemos de amor
Façamos amor
Na busca de nós
Querendo sentir
O que não se sente

Sentir o vazio do que será
Esperar por um amanhã que não chegará
Para quê sentir o que nunca se irá sentir
O que nunca se irá viver
Preso ao erro
Preso ao que não existe
Preso a um absurdo…

Quero que saibas que sem ti
Não existe vida nem morte,
Não existem a saudade e o carinho.
Não existe amor. Não existe ódio.

Quero que saibas que sem ti
Nada existe.

domingo, 8 de julho de 2007

Retratos de uma cidade impossível de retratar

- E é nessas alturas que é necessário acontecer o insólito para descentrarmos a nossa atenção de nós próprios e interagirmos com o mundo…

- Concordo perfeitamente… Ainda ontem assisti a um episódio insólito que teve o efeito que descreveste há pouco. Queres que te conte? Então foi assim… Ia pela rua quando me deparei com um músico… Só que o músico não tocava e cantava horrivelmente mas era, sem dúvida nenhuma, um músico. Tinha um microfone de madeira e, em vez de guitarra, usava uma simples tábua minimalista e, apesar de não haver cordas para fazer acordes, o músico parecia estar mesmo a fazer uma qualquer espécie de alquimia. Cantava com a voz esfarrapada, exprimindo o corpo como se fosse uma pop star. Não tem piada? Não era a isto que te referias?

in Café por Acaso

terça-feira, 3 de julho de 2007

O texto medieval da semana (tentativa de criar um diálogo de despedida entre mestre e discípulo)

Recebi a minha educação de um sábio irmão de minha mãe. Godofredo era um monge que me recebia num mosteiro nas cercanias de Clermont. O preceptorado de meu tio iniciara-se tinha eu cinco anos, findando-se quando atingira o meu décimo terceiro aniversário. Recordo-me do nosso último encontro enquanto mestre e discípulo. “Raimundo, temo que os meus humildes ensinamentos cessem brevemente…”. Lembro-me de ter colocado em Godofredo um olhar inquisitivo, raramente dialogava com ele através de palavras; a palavra era algo que exigia demasiada sabedoria para poder manuseá-la com meu tio. “Os teus olhos interrogam-me… sempre me interrogaram desde que te comecei a falar do latim, da sagrada doutrina de Deus, das leis que sustentam o mundo… és muito curioso rapaz, muito curioso…”. Sempre que meu tio-monge se esquivava dos meus silêncios inquisitivos o meu olhar adquiria uma tonalidade que enfatizava a curiosidade. “Pois… sabes meu rapaz, recordas-te de te ter falado de um grande homem? Recordas-te de te ter falado de Bernardo? Claro que te recordas… Pois bem, juntar-me-ei a ele no Mosteiro de Clairvaux.”

À revelação seguiu-se um largo silêncio… Meu tio-monge cogitava a melhor maneira de estruturar os seus pensamentos de forma a poder partilhá-los. “Sabes Raimundo?”. Encolhi os ombros como que suplicando para que ele respondesse à sua própria questão. “O homem caminha sempre para a sua perdição e sabes porquê? Porque não se limita a possuir e a querer possuir o entendimento das coisas. Se bem que o valor moral do desejo de se adquirir o entendimento de algo seja discutível, não é esse desejo que impele o homem para um fim moralmente reprovável. Repara nos animais; são livres de pecado porque se limitam a contemplar e a viver a vida que Deus lhes deu. O homem busca o entendimento das coisas e, pior que isso, o desejo de possuir essas mesmas coisas. Ao homem não lhe basta perceber o que o rodeia, necessita de dominar o que o envolve, reclamando o que pensou entender como seu. Mas o que é não pertence ao homem, pertence a Deus, e o desejo de se assenhorear do que nunca poderá ser seu é um sacrilégio. Além disso, o homem, mesmo quando pensa que possuiu qualquer objecto ou qualquer pensamento, nunca chegou a possuir coisa alguma. Ao homem não lhe basta conhecer, tem de se apropriar do que conhece e subvertê-lo para poder reclamá-lo orgulhosa e soberbamente como seu. Mas engana-se, pois a posse é ilusória e pecaminosa”.

Ambos reflectimos sobre as palavras e os seus sentidos. Germinava uma pergunta em mim que o silêncio não podia comunicar. “Mas há sábios que transformam pedra em ouro, subvertendo dessa forma as características e as qualidades que Deus deu às coisas”. Godofredo coçou o queixo.

“Não Raimundo, não há homens que consigam transformar pedra em ouro e, mesmo que o conseguissem, o ouro continuaria a ser simplesmente uma pedra, sendo que a mutação da natureza das coisas seria apenas ilusória. Os únicos homens que têm poder para dominar o que entendem não se atrevem a fazê-lo, porque são verdadeiramente sábios; a sua sabedoria ensina-os a contemplarem apenas as coisas e a testemunharem as manifestações divinas, evitando a tentação de se proclamarem senhores de determinada verdade… Estes salvam-se.”

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Ab urbe condita


Afinal a "loba do Capitólio" é alemã e o Rómulo e o Remo são polacos.

domingo, 1 de julho de 2007

Memórias de um velho sobre a sua juventude

Naquele tempo desejava descobrir-me… para o fazer teria de aparecer uma outra existência que afirmasse a necessidade do ser de um eu, visto que este não se consciencializa de si sem se confrontar com um outro. Por vezes, desta necessidade brotam situações complexas, nascem vivências e sensações que não cabem nas palavras nem na faculdade que nos foi concedida (ou que conquistámos) de expressar e comunicar objectos concretos e abstractos. Quando se é jovem deseja-se algo indefinido, etéreo e o desnorte aparece fruto da não visibilidade do que se deseja. Constrói-se um universo eidético que não possui ordem porque não se consegue objectivá-lo devido a uma ténue mundivivência… deste problema surge a necessidade de encontrar um outro, para o qual se transmuta o que se deseja idealmente. Encarnamos os nossos desejos na figura de um outro permitindo que o amor, ou algo que se lhe assemelhe, floresça.

Nesse Outono eu atravessava esse processo, podendo dizer-se que me apaixonara. Não… reflectindo bem, constato que não se tratava de amor nem de paixão, era, isso sim, um exercício mental que concentrava os meus desejos no corpo de uma mulher. Dulce… a expressão que mais se te adequa é aquela que foi amada sem o ser realmente… Não importa, o que interessa é que naquela altura eu acreditava mesmo amar-te… contemplava-te… procurava os locais onde a tua presença enchesse o espaço… observava-te numa doce sucessão de momentos. Fui feliz assim, amando-te sem tu o saberes.

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Nova "lei do tabaco"

Antes desta lei quando alguém estava a fumar um charro num local público dizia que estava a fumar um cigarro de enrolar. Depois desta lei, quando alguém estiver a fumar um cigarro num local público dirá que está a fumar um charro.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

Outro excerto de uma reunião dos Alcoólicos Anónimos. É que hoje é quinta-feira.

"Eu bebo porque sinto a alegria quando me embebedo. O problema é que já não sei se quando fico com os copos a alegria que sinto é genuína, ou se é apenas uma aparência. É tudo muito confuso… quando não estou bêbeda tenho uma personalidade taciturna, não consigo ter capacidade criativa, pareço uma sombra; mas quando me alcoolizo sinto-me plena de alegria, com uma vontade enorme de me divertir e de criar coisas novas, de criar objectos novos e nunca antes vistos.

Por isso é que não sei se deva ou não deixar de beber… se por um lado serei mais saudável, por outro sinto que nunca mais conseguirei esculpir a pedra… sem o álcool não irei conseguir talhar na rocha os sentimentos imateriais que ninguém consegue tocar… as minhas esculturas dão-me essa possibilidade.

Sem o sentimento etílico tudo se irá desvanecer, tudo desaparecerá. O álcool é o elemento que me possibilita fazer a alquimia dos sentires em sentidos… Acho que não estou aqui a fazer nada... … Vou-me embora, foi um erro tremendo vir até aqui…"

quarta-feira, 27 de junho de 2007

O problema da perfeição

Nunca ninguém a conseguiu exprimir.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

D. Sebastião e o V Império

Eu juro que não faço estas coisas de propósito, mas a poesia parece perseguir-me. Depois da mulher que vendia poemas , que por acaso voltei a encontrar novamente, foi a vez de um senhor na praia, com a pele batida pelo sol e áspera do tabaco, me perguntar se gostava de poesia. Não foi bem se gostava de poesia, foi mais: "Gosta de Fernando Pessoa?". Ao que eu respondi que sim, porque por acaso até gosto de Pessoa, dos heterónimos e do semi-heterónimo (um dia ainda conversaremos sobre os semi-heterónimos). E pensei, se me vai vender um poema, ao menos que seja um poema de Pessoa. Mas não, o senhor não me queria vender nenhum poema, queria era oferecer-me um livro de poemas de Fernado Pessoa.

Poucos minutos depois, sentei-me e abri o livro ao acaso. Deparei-me com o "D. Sebastião" e o "Quinto Império" e pensei que afinal o sebastianismo ainda está vivo, já que todos os líderes de Portugal, por mais promissores que pareçam, acabam perdidos nas areias de um qualquer Alcácer Quibir. O que querem? "Ser descontente é ser homem".

domingo, 24 de junho de 2007

Dúvidas de um escritor ao começar uma narrativa

No princípio Deus criou o céu e a terra… É muito fácil dizer que no princípio isto, no princípio aquilo… O problema é que no princípio nada existe e temos de transformar a coisa nenhuma num céu e numa terra. É por isso que nos é sempre difícil criar um princípio para o que quer que seja. Para construir uma narrativa temos de criar um céu e uma terra e tudo o resto até que o Verbo seja carne. O que custa é iniciar… Vamos acumulando sonhos na nossa memória, pensamentos que nos assaltaram nas nossas vigílias, sensações que experimentámos e experiências que sentimos. Podia começar com o célebre «No princípio Deus criou o céu e a terra».

Não!!! Nada disto!!! É preciso estar muito desesperado para começar com o princípio da Bíblia. E se começasse com um gajo a assobiar uma melodia de uma sinfonia qualquer?

Não serve!!! E se… e se… mal de nós quando tudo principia por um mísero e se… Imaginem Deus a criar o mundo, o universo ou o que quer seja… Imaginem Deus a pensar: e se criasse primeiro uma mulher e depois um homem? … E se pusesse seios ao homem e barba à mulher?... E se em vez de maçãs o fruto proibido fosse um morango? … Assim sempre era mais afrodisíaco, e com um bocadinho de chantilly o Paraíso seria tema recorrente em filmes pornográficos... E se… e se… Tudo o que principia por um reles e se nunca passará de uma reles experiência do que quer que seja. É como construir uma casa sem alicerces, é como parir sem gravidez... E se a minha personagem fosse um mísero e reles vagabundo sem consciência de si?....

quinta-feira, 21 de junho de 2007

Mais um excerto de uma reunião dos Alcoólicos Anónimos, porque hoje é quinta-feira

"Não sou só eu que sou uma merda, todos nós somos merda, os que aqui estamos e os que não estão aqui. Os que são e os que se foram, tudo merda. Nunca se sentiram absorvidos por algo que não vos leva a lado nenhum? É assim que a puta da bebida me faz sentir… caminhar para um vazio, para um buraco negro. O álcool alimenta-me de nada e não consigo deixar-me de alimentar de um éter vazio e inexistente, que conduz a uma não acção permanente e me enovela num tédio contínuo, criado à parte da realidade e do que existe, retirando-me todas as possibilidades de contacto com outra coisa que não seja esse mesmo tédio. Não percebem pois não? Já calculava, mas também não quero saber…

De certeza que não sabem o que é perder tudo por causa desta merda… De certeza que não sabem o que é ficar sem emprego, sem família e sem existência… De certeza que não sabem o que é ser o exemplo do paradoxo de perder tudo por algo que nos fez perder tudo e continuar a perder tudo depois de ter perdido tudo…

Que discurso de merda… fiquei sem nada do que me foi, incluindo o dom da comunicação… nem eu próprio percebo o que digo… Nem sei o que vim aqui fazer…

Só sei é que me apetece pontapear o tédio vazio que me aparece… mas como é que consigo pontapear o vazio? Impossível… impossível vencer algo que já não me é exterior mas que já faz parte de mim próprio, que já me sugou toda a capacidade de ser eu próprio ou o raio que me parta… (começa aos pontapés à cadeira) Desculpem lá seus bêbedos da merda… mas eu não estou aqui a fazer nada… boa sorte para vocês…"

terça-feira, 19 de junho de 2007

O texto chato da semana (exemplo de texto cheio de lugares comuns)

A rua estava inundada, enlameada, perdida no esquecimento de todos os que por lá não passavam. Umas dezenas de miúdos dirigiam-se para a escola… era mais um dia invernoso em que a imposição de aprender os obrigava a levantar da cama de manhãzinha, bem cedinho, ainda o dia não irrompera pelas trevas nocturnas. Agasalhados e munidos de guarda-chuvas atreviam-se a romper o frio à procura do saber. Uns faziam-no de livre vontade, mas a maior parte nem por isso. As botas escuras acastanhavam-se com a lama… a autarquia ainda não se lembrara da necessidade de pavimentar a rua.

Das dezenas de miúdos que se dirigiam para os edifícios da sapiência, um deles revolvia-se pela lama como um porco numa furda. Esquecido por todos os outros fora atirado ao chão por alguns deles. A roupa que a mãe lhe preparara com diligência conspurcava-se na terra barrenta. A face salpicada de sujidade parecia permanecer impassível, séria e fria, num sentimento de quem nada podia fazer para mudar o estado das coisas. No entanto, não era bem o sentimento de impotência que o absorvia, mas sim a consciência de que as coisas eram assim e não valia a pena o trabalho de as tentar mudar. Ergueu-se como se nada se tivesse passado… a melhor forma de nos alhearmos do que nos humilha é fingir que essas coisas são nada. Verificou o estado da mochila… a sua preocupação centrava-se apenas na possibilidade da lama ter penetrado nos livros e nos seus cadernos de poesia… sim, porque para ele não valia a pena ter cadernos todos abonecados para as disciplinas. Talvez pouca coisa valha mesmo a pena… mas não querendo contrariar o adágio de um poeta coloco já aqui um ponto final neste assunto. Isto no fundo é preguiça, mas decerto que todos compreendem os preguiçosos… se nada fazem, a possibilidade de fazerem coisas desagradáveis é bem menor. Mais valia que estivéssemos todos quietos… mas toda a gente pensa que a vida se manifesta pelo movimento… enfim, andamos todos enganados e somos felizes com isso. Esquecia-me de referir que a possibilidade que causava a preocupação do miúdo não se realizou…

Timidamente, o miúdo enlameado retomou a sua caminhada para a escola. Estava atrasado… os relógios são implacáveis, nunca querem parar; e mesmo quando algum se lembra de ficar quieto (ou se esquece de continuar a sua marcha inexorável [escolham a melhor opção porque isso tanto se me dá como se deu]) os outros nunca lhe seguem o exemplo. Atalhando conversa, que isto já se está a tornar chato, o miúdo chegou atrasado à aula e ouviu uma descompostura da professora de História.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Eu sou leitor ocasional "Do Portugal Profundo"

Hoje apetecia-me escrever sobre dança. Mas a minha mãe costuma-me dizer: "Na vida não se pode fazer só o que nos apetece" e penso que há um assunto que vale mais a minha reflexão do que o tema da dança. Trata-se do facto de António Balbino Caldeira ter sido convocado para ser ouvido como arguido no Departamento de Acção e Investigação Penal (DCIAP) (isto quando se escreve sobre coisas judiciais parece que as palavras nunca mais acabam e insistem todas em rimar), segundo informação veiculada pelo próprio, no âmbito do chamado "dossier Sócrates" (eu sei que há muita gente que escreve dossiê e talvez essa seja a forma mais correcta, mas eu sou teimoso e escrevo dossier). Ora bem, o autor do blogue "Do Portugal Profundo" foi o primeiro a publicar informações relacionadas com o percurso académico do primeiro-ministro português, o que serviu de fio de Ariadne para a catadupa informativa que depois se seguiu. Para além disto, e segundo a mesma fonte, o autor do blogue foi também notificado para prestar depoimentos enquanto testemunha num outro processo ligado ao mesmo assunto.

Desconheço qual o motivo concreto que levou o cidadão Balbino Caldeira a ser constituído arguido. Mas depois do caso da DREN, das declarações de directores de jornais sobre alegadas (bela palavra para livrar os tomates do cepo) pressões por parte do Governo em notícias relacionadas com a licenciatura de Sócrates e de outros incidentes, é caso para desconfiar se não nos andam a amordaçar e se já nos vendaram os olhos sem nos apercebermos.

E depois há a questão do ser-se arguido. Acho que só quem for ou já tiver sido arguido é que pode ser português. Penso até que só se pode conceder a nacionalidade portuguesa a quem já tenha padecido dessa situação. Estamos no país em que até ter um estendal numa parede é caso para se ser arguido (oooops, acho que isto está em segredo de justiça, amanhã é certo que nem ginjas que vou receber uma notificação da PGR a dizer que sou arguido no processo "estendais & roupa suja". Vou emoldurá-la e tudo).

Tudo isto para dizer que limitar a liberdade de expressão é feio e que, a confirmar-se que Balbino Caldeira não cometeu nenhuma acção que justifique ter sido constituído arguido, andam a brincar com o fogo. É que podem tirar-nos salários, emprego, benefícios sociais, qualidade de vida, mas quando se trata da liberdade de expressão, aí as coisas podem dar para o torto. Mas tem de se aguardar para ver que rumo esta história irá tomar. Se Balbino Caldeira foi constituído arguido apenas por ter publicado informação relevante, e obtida de forma legal, sobre a licenciatura do primeiro-ministro aplaudo a sua coragem. Parecendo que não, é mais fácil escrever textos sobre dança do que sobre assuntos incómodos (mas, que diabo, também deve ter muito mais piada).

Pois bem, a dança fica para amanhã.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Receita para se fazer um Berardo

Primeiro preparam-se os ingredientes para se fazer o Berardo. E é fácil encontrá-los, aos igredientes claro, numa ilha chamada Madeira e que mais parece uma República das Bananas. Depois, deixam-se os ingredientes a temperar na África do Sul, de preferência numa mina de ouro que se pode comprar ao preço da chuva. Temperados os alimentos, introduzem-se na panela de pressão, que é como quem diz, em Portugal. É verdade, já me esquecia, falta temperar. Introduzem-se umas pitadas de arte contemporânea para comporem um dos maiores centros culturais do país, uma aparição num anúncio do BCP e deixa-se tudo ao lume durante uns meses.

Para os principiantes, bastam estas indicações. Já serve para preparar um prato de um homem de negócios bem sucedido, que nem sabe exactamente onde fez fortuna. Mas ainda não se trata de um Berardo de haute cuisine, de um Berardo com pedigree. Para se conseguir confeccionar um destes, é preciso juntar uma participação financeira de relevo nas maiores empresas portuguesas e levar o povo a dar-lhe palmadinhas nas costas, por exemplo, numa Assembleia Geral da Portugal Telecom. Para o prato ser mesmo digno de um grand chef, tem de se lhe juntar protagonismo no debate sobre o maior banco privado português, tipo o BCP, e o título de comendador. A refeição parece estar pronta.

Falta só uma coisa. Não esquecer decorar o prato com uma posição dominante no maior clube de futebol do país e de servi-lo vestido de preto. E para beber, um financiamentozinho para o estudo sobre a localização de um aeroporto qualquer.

Imagem ofurtada de http://oam.risco.pt

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Hoje é quinta-feira, mais um dia de excertos da reunião dos Alcoólicos Anónimos

"Olá, eu chamo-me… ah… chamo-me… esqueci-me do meu nome… como é possível? É a terceira vez que esta merda me acontece esta semana… Só um momento, vou ver se encontro o meu bilhete de identidade para me lembrar do meu nome… não encontro… olha que esta… onde é que já se viu… uma pessoa esquecer-se do próprio nome?

Mas se o meu nome tivesse importância com toda a certeza eu não me teria esquecido… já repararam? Esqueço-me do meu nome mas continuo a saber conjugar os verbos… estão a ver? A linguagem sim é importante, é por isso que eu não me esqueço dela… agora o nome, o nome não tem importância nenhuma… recordo-me agora que havia gente que me costumava tratar por vulva 24 horas…

Sabem que antes de ser bêbeda eu era agarrada… é verdade… acho que me chamavam vulva 24 horas pelos favores que eu fazia para me arranjarem uma dose… mas isso não importa… isso são outros tempos… são os tempos que fizeram com que o meu nome se apagasse da memória… e se reduzisse a uma simples alcunha… foram outros tempos…

Comecei a habituar-me ao álcool quando estava a fazer uma desintoxicação numa quinta perdida entre pinhais… acho que aquilo ficava mesmo no cu de Judas, se não era no cu de Judas era lá perto, p’raí na virilha ou assim… Aquilo tinha uma disciplina muito rigorosa, mas havia um gajo que levava vodka e gin lá para dentro… assim à socapa, estão a ver?... consegui deixar a heroína… mas abracei-me primeiro suavemente e depois violentamente à bebida…

Nem sei porque vim até aqui… estou aqui a falar da minha alcoolemia, mas só penso que quando sair daqui posso etilizar-me, destilar-me a noite toda, quando acordar, antes de adormecer, quando acordar outra vez… Eu sei que estou doente, sei que o álcool em mim funciona como uma patologia, é o meu pathos, estão a ver, uma puta bêbeda também sabe palavras em grego, não tem piada?

O que é que eu estava a dizer? Ah, que sabia que estava doente… mas não tenho a certeza se quero recuperar-me… é que eu acho que já não me lembro de mim antes de estar viciada em alguma coisa… tenho medo de voltar a recordar o meu nome se me recuperar… aliás, se eu me recuperar de certeza que tenho de arranjar outra coisa qualquer para me desrecuperar… a ideia de me reencontrar comigo é demasiado evangélica para eu a conceber… Que se lixe… ao menos venho até aqui e falo, falo, falo… sabe bem… um bocado de falo sabe bem… não… falo não… álcool… é por isso que aqui estou… pois… álcool…"

quarta-feira, 13 de junho de 2007

A confusão dos códigos sociais

Nunca me adaptei muito bem a códigos. Nem sequer tiro a carta de condução, tudo por causa do código da estrada. Também não sei combinar a minha roupa, o que denota um grande desconhecimento do código do vestuário, e não sou grande fã do código do trabalho. As disciplinas de Ciências Sociais que menos aprecio são aquelas que têm como base de estudo os códigos, tipo Semiologia e Semiótica.

Mas os que não se conseguem adaptar a códigos, nunca terão muita sorte na vida, porque, queiramos ou não, todas as relações sociais são regidas por códigos. E o facto de não os respeitar leva-nos a pensar: "Mas o que estou aqui a fazer?". E se os códigos sociais fossem fáceis de compreender, vá, a coisa ainda que se compunha. Mas não são.

Exemplos:

Uma senhora idosa aproxima-se do lugar onde estamos sentados no metropolitano. Lenvantamo-nos para lhe dar o lugar e ela não se senta. Toda a gente olha para nós com aquele ar: "Que ganda otário". Mas se uma senhora idosa se aproximar do nosso lugar e não nos levantarmos , toda a gente olha para nós com aquele ar: "Já não há respeito".

Vamos a uma conferência sobre um assunto qualquer e o orador, que sabe muito mais daquele assunto que nós, pergunta: "Sabem porque se chama bull market quando as bolsas sobem e bear market quando as bolsas descem?". Se respondermos: "Por causa da direcção do movimento de ataque do touro e do urso", fica toda a gente a olhar para nós de esguelha, como que a dizer: "Lá está ele outra vez a armar-se em espertinho". Por outro lado, se dissermos: "Não, não sei", lá fazem aquele sorriso condescendente como que a perguntar: "Como é possível tanta falta de cultura financeira?".

Encontramo-nos com uma pessoa do outro sexo e ela estende a mão para nos cumprimentar, quando nós já vamos com a cara disparada para dar dois beijinhos, e a outra pessoa pergunta: "Mas já andei a guardar ovelhas consigo?". Se, por outro lado, escaldados que estamos de nos chamarem pastores, estendemos a mão porque os dois beijinhos já não se usam, a outra pessoa olha para nós com aquele ar de que temos mesmo "ar de não me toques".

E quase que podia preencher o ciber-espaço com exemplos de pequenas entropias sociais que provam a dificuldade de entender e interpretar o código social, mas textos muito longos também quebram o código da blogosfera, não é?

terça-feira, 12 de junho de 2007

Crónica de uma noite de Santo António

Começa tudo no Marquês de Pombal. Desce-se a Avenida a acompanhar os que marcham asfalto abaixo, elas com manjericos na cabeça, eles agarrados a um ferro enfeitado que não sei como se chama na gíria das marchas, cantando versos numa melodia sempre igual acompanhada por batuques também eles sempre iguais. Eu, mochila carregada de cerveja e espírito sedento de bebida. A caminhada avança e o relógio também. No Rossio as mulheres com manjericos na cabeça e os homens que estiveram agarrados a um ferro enfeitado estão descalços, com dores nos pés, de tanto martelarem no asfalto da Avenida. Eu, mochila menos carregada e espírito mais reconfortado.

Contorna-se a colina coroada por um castelo. Caminha-se perto do rio. Aparecem pessoas saídas sei lá de onde (terá sido do Tejo?) que congestionam as ruas. O cheiro da sardinha assada, a raínha da época, é rei e possui os magotes de gente penetrando-lhes nos poros da roupa e da pele. Eu, mochila quase vazia e espírito quase cheio.

Sobe-se a custo a colina do castelo, esbarrando nuns, noutros e em mais outros. A mochila vazia, o espírito pleno e os olhos a sofrerem de uma miopia alcoólica que desfoca os rostos das pessoas que vêm e vão, como as ondas eternamente a rebentar contra a areia e contra as pedras, e isto não é em sentido figurado porque já há muita gente a esbarrar nas paredes. As ruas estreitam-se e o congestionamento torna-se mais evidente. Se houvesse agora um terramoto que deitasse as casas da colina abaixo seria como se rebentasse um dique que controla uma infinidade de gentes. Eu, já sem mochila e com o espírito a teimar na sede apesar de já estar com o depósito cheio.

Galgada a colina, ultrapassada Alfama, paro na entrada do castelo. Os sons agora já me aparecem abafados, longíquos até, e o cheiro a sardinha já se tornou imperceptível de tão evidente que é. A miopia agrava-se e tento adivinhar os contornos dos rostos das gentes e gentes que vêm e vão.

Chego a casa sem nenhuma memória do tempo e do espaço percorrido na chegada a casa. Acordo de manhã, com dor de cabeça, obviamente. A roupa a tresandar a sardinha. Procuro os óculos, coloco-os e a miopia grave regressa. Retiro os óculos, aponto-os contra a luz. Estão cheios de gordura de sardinha. Vou buscar o detergente para o fogão e limpo os óculos. Finda a delicada operação de limpeza, o mundo já se me mostra outra vez nos seus contornos normais, mas a dor de cabeça não passa. Este ano fiquei em casa... é que já não tenho detergente para o fogão e não consigo passar um dia sem ver o mundo.

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Quanto vale um poema?

Cinco euros.

Passo a explicar: hoje, quando ia para o trabalho, fui interpelado por uma senhora. Não é que não esteja acostumado a ser interpelado por senhoras. Muitas vezes pedem-me dinheiro e cigarros ou então dão-me panfletos e jornais gratuitos. Mas a abordagem desta senhora foi diferente: "Gosta de poesia?". Ao que respondi: "Gosto, mas estou cheio de pressa". E não é mentira. Eu estou sempre cheio de pressa, porque a pressa é a característica daqueles que têm um problema intríseco com a pontualidade, mas que querem resolvê-lo.

O argumento da pressa não a convenceu: "Quer comprar um poema?". E eu: "Mas não tenho dinheiro". Também não é mentira, é que esta brincadeira de escrever em blogues não dá propriamente sustento a ninguém. "Então deixo-o ler sem pagar". Sai uma folha A4 batida a computador salpicada por versos bem versados de dentro de uma capa e comecei a ler. O poema era bom, triste mas bom (mas quem é alguém para dizer se um poema é bom, um poema é um poema e pronto). O olhar triste da mulher ansiava por uma resposta e/ou por uma compra. Tinha de comentar o poema assim de rajada. Pensei em dizer "está giro", mas da última vez que fiz este comentário sobre uma coisa artística a reacção não foi lá das melhores. Parece que estar giro é estar assim coisinho, parece a apreciação do gajo que não gostou mas não tem tomates para o dizer. E não era o caso, quer no poema, quer na outra apreciação a uma performance artística.

O melhor que consegui foi: "É bonito..." (no fundo não é muito diferente de "está giro", pois não?) "Espero apenas que as emoções do sujeito poético não sejam as do autor" (porque de facto o poema era assim a dar para o melancólico). A resposta, pronta e fria: "Mas são. Quer comprar?". Disse que não, e lá vim outra vez com o argumento da pressa e do dinheiro. Nem sequer perguntei o preço.

No resto da minha caminhada pensei: "Se o autor não se distancia do poema é porque ainda não atingiu a maturidade literária, porque as referências autobiográficas directas não aparecem nas fases maduras dos grandes poetas". Enfim... divagações. Mais tarde vim a saber que o tal poema, que não vou tentar reproduzir devido aos direitos de autor que eu tanto prezo, custava cinco euros.

Algumas horas depois vi os salários dos gestores de algumas empresas da bolsa portuguesa e concluí: "Com tanto dinheiro nunca teriam tempo para ler todos os poemas que podem comprar".

sábado, 9 de junho de 2007

Amor a recibos verdes

Numa altura em que toda a gente fala em flexigurança (ou será flexisegurança? Olhem, é o raio que o parta que um dinamarquês inventou porque no país dele não faz bom tempo para se poder ir para a praia), apetece-me falar em relações. Não laborais, é certo, mas amorosas. Parece que, para além da flexigurança/flexisegurança também estão a ganhar adesão as relações tipo prestação de serviços sem compromisso, em que os sujeitos são independentes e podem ser despedidos sem justa causa e sem direito a subsídio de doença ou de desemprego. No amor a recibos verdes já não existe cá aquela treta "na saúde e na doença, na tristeza e na alegria". É cada um por si e quando os serviços forem dispensados cada um se arranje. Nos dias que correm é muito difícil encontrar uma relação onde se consiga "entrar para os quadros".

Já viram como as tendências do mercado laboral se espalham para os comportamentos amorosos?

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Excerto de uma reunião dos Alcoólicos Anónimos

"Não sei muito bem por onde começar, já nem sequer me lembro muito bem quando comecei a beber e porquê… bem, talvez me lembre, talvez tenha apenas receio de o dizer, de o recordar. É claro que durante a minha juventude tive aquelas bebedeiras com os meus amigos, mas essas não contam, não são essas que me estão a matar, que me estão a fazer desaparecer, não são essas que me afogam em mim, não são essas que me corroem como um cancro fulminante… não são essas, não são…

O problema é que comecei a beber como quem não quer a coisa, como quem se sente vazio e procura algo, o que quer que seja, para se sentir um bocado menos afastado do sentimento de pleno. Talvez me tenha tornado alcoólico porque todos os sentimentos que pensava existir não passavam de meros pensamentos, sem concretização na realidade. O amor, o que é essa merda? Um receptáculo colocado no meio das pernas abertas de uma mulher, de uma mulher que abre as pernas por rotina, frígida como uma falésia de mármore, que conta as moscas que estão no tecto, que se está a cagar para o que tu sentes ou deixas de sentir? O amor não existe… a amizade, treta, treta, treta, treta, treta…


Um gajo desilude-se com as merdas e entra numa espécie de vácuo niilista ou o raio que o parta e adere à primeira seita que nos bate à porta… neste caso a seita foi o álcool. Sinto-me bem quando bebo e quando acabo de beber, sinto-me péssimo antes de beber. Quando bebo sinto que estou a fazer algo que, de certa forma, acaba por me preencher, depois de beber sinto-me novamente uma criança que acredita em tudo o que lhe dizem, acredito novamente que as coisas podiam ser perfeitas, que a plenitude está perto, que o que não foi podia ter sido, que a felicidade existe e que estou a um pedaço de a conseguir… mas há sempre uma voz que te diz: “falta-te um bocadinho assim” e caio naquela espiral que nos faz vomitar, que faz o cérebro boiar no nosso crânio e por aí adiante…

Das poucas vezes que estou sóbrio sinto que o processo da alcoolização não passa de uma rotina tão estúpida e maquinal como um abrir de pernas robotizado…

Penso que é tudo…"

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Versão infantil da Cimeira do G-8

Era uma vez um menino que se chamava Jorginho e outro que se chamava Vladimirzinho.

Os meninos gostavam muito de um brinquedo chamado Terra.

Ambos os meninos queriam o brinquedo só para si. Mas Vladimirzinho tinha medo de desafiar Jorginho, porque o Jorginho tem muitos amigos e o Vladimirzinho é mais solitário. Só que o Jorginho queria mesmo mesmo muito a Terra, mas tinha medo de afrontar directamente o Vladimirzinho. Então o que fez o Jorginho? Usou as histórias do bicho papão, que até usa turbante e tudo, para assustar os amiguinhos e pregar uma partida ao Vladimirzinho. Mas o Vladimirzinho, que quer ser taxista quando crescer, não é nada burro, e percebeu a jogada do Jorginho, que começou a puxar pelo brinquedo sem ninguém dar por isso. O Vladimirzinho ameaçou então o Jorginho: "Se tu puxas pelo brinquedo eu também puxo". Mas há um pequeno problemazinho. O tal brinquedo, a Terra, é frágil, e a qualquer momento pode partir-se.

terça-feira, 5 de junho de 2007

Os fazedores de opinião

Há muitas coisas que me fazem confusão. Uma delas é a expressão "fazedores de opinião". Isto porquê? Porque os ditos "fazedores de opinião" proliferam nas ditas democracias, onde é suposto os cidadãos pensarem pelas suas cabecinhas e construírem a sua própria opinião. Assim sendo, é paradoxal que em sociedades denominadas democráticas exista essa figura do "fazedor de opinião", como se as opiniões fossem construídas, pré-fabricadas, como se se tratasse de uma linha de montagem de opiniões. Mais irónico é o suporte utilizado pelos "fazedores de opinião" (imprensa, televisão, internet) que são, como os responsáveis pelos meios de comunicação gostam de os descrever, o baluarte da liberdade e um dos garantes dos sistemas democráticos.

Assim, das duas três: ou os fazedores de opinião assumem que todo o seu auditório é acéfalo e que pretendem influenciar a sua decisão; ou então têm de iniciar uma campanha recusando o seu estatuto de "fazedores de opinião", assumindo-se apenas como mais uma pessoa normal que quer partilhar a sua opinião.

Mas pior que os "fazedores de opinião" são os "líderes de opinião". O que é ser um líder de opinião? A opinião é uma competição, onde uns se destacam mais que outros, e ganham a "camisola do rei da opinião"? Mais ainda que os "fazedores", os "líderes de opinião" são um areal na engrenagem dos sistemas que se querem democráticos, ao jeito de um Novo Testamento pós-modernista em que os apóstolos seguem não o Messias, mas o "líder de opinião".

Outra coisa que me irrita nos "mestres da opinião" é serem especialistas em tudo e mais um par de botas e/ou depois virem com falsas modéstias, do género, "eu não sou técnico em engenharia, mas o novo aeroporto devia ser localizado em determinado lugar". Parecidos com aqueles a quem lhes perguntam: "Onde fica a Rua da Betesga?" e respondem: "Não sei, mas o Rossio é já ali...".

Como diria o outro: "As opiniões são como as vaginas, cada um tem a sua e dá-a quando quiser". Opiniões precisam-se. Dispensa-se é quem queira fazer da sua opinião um veredicto, um dogma, um postulado e que se veja a si próprio como um "fazedor" ou, pior que isso, um "líder" de opinião.

Mas depois há um problema: para quê emitir uma opinião, se realmente não queremos persuadir ninguém? Por exemplo, se alguém lesse este texto e pensasse "eh pá... olha que as coisas até são assim" confesso que ficaria satisfeito, enquanto se alguém respondesse "este fala dos que fazem opinião, mas está a tentar imitá-los e sem jeito nenhum para a coisa", aí a modo que me sentiria assim com a auto-estima um bocado ferida.

Que se há-de fazer? No início do texto referi que "há muitas coisas que me fazem confusão" e parece que a democracia e a opinião integram esse lote de "muitas coisas".

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Pontes e suicídio

"The Bridge" é um documentário sobre a Ponte Golden Gate em São Francisco. O que à partida parece ser apenas mais uma película, foi e é um dos grandes focos de controvérsia nos Estados Unidos. O motivo: o realizador Eric Steel argumentou junto das autoridades que precisava de filmar a ponte durante um ano para fazer um documentário sobre monumentos nacionais e sobre a interacção da infra-estrutra com o meio envolvente. Mas, na verdade, o argumento era falso, já que durante esse ano Steel aproveitou para filmar os suicídios cometidos na ponte (26), que serviram de matéria-prima para a elaboração de "The Bridge".

O realizador argumenta que quis alertar a sociedade para o problema do suicídio, afirmando que a ponte de São Francisco é o local onde mais pessoas põem termo à própria vida. A verdade é que a administração da Golden Gate, após a estreia do filme, encomendou estudos com o objectivo de colocar barreiras arquitectónicas que dissuadam os suicidas. Para além das filmagens, Steel entrevistou pessoas próximas das vítimas da Golden Gate, ocultando-lhes, no entanto, que tinha filmado o salto fatal.

A equipa de Steel conseguiu captar as imagens de um suicida que resistiu à queda. O sobrevivente afirmou depois que se arrependeu do seu acto assim que saltou, o que o levou a procurar uma posição de mergulho que atenuasse o impacto.

A questão que fica é: "The Bridge", que estreia nas salas portuguesas a 14 de Junho, é oportunismo ou uma tentativa de sensibilização?