domingo, 5 de julho de 2009

Esboço de personagem (menina de oito anos)

Sempre tive medo do escuro. Desde que me lembro de ser eu que me lembro de ter medo do escuro. E o meu pai também me dizia que eu tinha medo do escuro, mas isso não impediu que também ele desaparecesse pelo meio do escuro. A minha mãe não dá muita importância ao meu medo do escuro. Sabe que tenho medo do escuro, mas diz-me que isso é normal e diz-me para pensar nas bonecas com vestidos cor-de-rosa que estão nas prateleiras daquela loja dos senhores de olhos em bico que têm um bebé também com os olhos em bico e rechonchudo e com os cabelos em pé. Mas eu não gosto das bonecas com vestidos cor-de-rosa que estão nas prateleiras daquela loja dos senhores de olhos em bico. Eu gosto é das Barbies e dos Kens e da casa da Barbie e do carro da Barbie e da mota da Barbie e da Barbie enfermeira e da Shelly que é a sobrinha da Barbie. Mas a minha mãe finge que não sabe que eu gosto é de Barbies. São muito caras, diz ela. E ela também tenta fingir que se esquece que eu tenho medo do escuro, senão não me deixava todas as noites sozinha com o meu irmão pequenito. Mas parece que não é irmão, parece que é só meio-irmão. Pelo menos é isso que diz a Ana que anda comigo na escola. E também foi a Ana que anda comigo na escola que me falou das Barbies e dos Kens e da casa da Barbie e do carro da Barbie e da mota da Barbie e da Barbie enfermeira e da Shelly que é a sobrinha da Barbie. A Ana lá da escola diz que as bonecas com vestidos cor-de-rosa que estão nas prateleiras daquela loja dos senhores de olhos em bico não prestam. E eu acredito na Ana, porque todas querem ser amigas da Ana e eu também quero. Mas eu agora não posso pensar nas Barbies. E tenho de ser forte e esquecer o meu medo do escuro. Tenho de cuidar do meu irmão ou meio-irmão como diz a Ana que anda comigo na escola. Mas eu ainda não sei se é irmão ou se é meio-irmão. E ele não tem medo do escuro. Ainda não tem idade para saber que o escuro pode fazer mal. O pai dele também desapareceu pelo meio do escuro, mas o meu irmão ou meio-irmão, ainda não sei, não tem idade para se preocupar com isso. Nem sabe que a mãe nos deixa quase todas as noites sozinhos para ir trabalhar. A mãe nunca me disse onde trabalhava, mas eu acho que ela tem um trabalho muito importante porque demora-se sempre muito tempo a arranjar. Ela nunca me disse, mas eu acho que é enfermeira, como aquela Barbie da Ana que anda lá na escola. Toma banho, passa meia hora em frente ao espelho a pintar-se e a pôr-se bonita. Até parece uma Barbie. Mas eu às vezes sou má e quando fico zangada com ela por ela nos deixar sozinhos no escuro digo-lhe que ela parece as bonecas com vestidos cor-de-rosa que estão nas prateleiras daquela loja dos senhores de olhos em bico. Digo-lhe que são feias e que ela é tão feia como elas. Mas depois sinto-me mal e no outro dia de manhã quando ela ainda está a dormir vou-lhe dar um beijinho e digo-lhe ao ouvido "gosto muito de ti mãe, ainda és mais bonita que a Barbie enfermeira da Ana lá da escola".

4 comentários:

continuando assim... disse...

estou curiosa ... fantástico ! :)

laura disse...

Fantástico... fiquei presa ao texto e à vontade de proteger essa menina com medo do escuro, para lhe poder garantir que tudo ficará bem...

Cláudia disse...

Muito bom o texto, sim senhor :D

CamilaSB disse...

que bom é ser pequenina! mesmo com medo do escuro,mal ou bem, a mãe está sempre por perto...para ligar a luz em caso de emergência...essa menina amorosa, é luz para sua mãe e as barbies são só um pormenor... uma ternura de texto!