domingo, 26 de julho de 2009

Esboço de personagem (Gajo Picuinhas)

Supermercado de putas... da janela do autocarro nocturno vazio vejo amontoados de carne usada espalhada pelos passeios. Adereços berrantes, cores estendidas pela pele, roupas que deixam adivinhar órgãos usados vezes infindas. Homens que percorrem o passeio para cima e para baixo, aproximando-se das presas como abutres famintos, como se fossem pelintras em redor do expositor de supermercado onde estão os produtos promocionais, tipo daqueles leve dois pague um ou com vinte por cento de desconto, ou então, aqueles produtos promocionais mais sofisticados, do género, na compra deste delicioso queijo de barrar que tem prazo de validade de hoje, oferecemos-lhe uma embalagem de pão de ontem (como diria um amigo meu: "É a loucura").

Saio do autocarro, caminho pelo passeio onde presas que querem ser caçadas e predadores que, sem o saberem, acabam por ser caçados, se misturam, se aproximam, falam, negoceiam, regateiam, num ambiente onde o odor hormonal e libidinoso domina, apesar de ninguém o sentir. É tão evidente que o olfacto não consegue percepcioná-lo. Nem um cão altamente treinado, daqueles que fazem resgates e que baptizam com o nome de "binómio cinotécnico" conseguiria detectar este cheiro. Para dizer a verdade, eu também não o consigo cheirar, mas sei que ele existe porque inquina-me as memórias e os pensamentos.

Caminho apressado, discreto. Tento evitar que se pousem olhares sobre mim, não quero... não gosto... Talvez prefira observar a vida a vivê-la, optando por ver no lugar de ser visto. Procuro as chaves no bolso. Cá estão elas, a reluzir. Abro a porta do meu prédio... escuridão total. Ouve-se uma melodia perdida, consumida pelas paredes e pilares. Ouvem-se conversas abafadas, que parecem ressoar do interior de mim. Carrego no interruptor, a escuridão não se desvanece. Azar! (Como diria um amigo meu: "São vidas") Começo a galgar as escadas com cuidado para não tropeçar. Seis andares, sem elevador. À medida que ultrapasso os degraus, a tal melodia vai-se tornando mais evidente e as tais conversas menos abafadas. Já consigo distinguir a melodia de uma qualquer música romântica sem qualidade (como diria um amigo meu: "Música de fazer meninos"). Já consigo distinguir na conversa um timbre feminino com sotaque brasileiro, que tenta modelar os sons no tracto vocal para lhes dar uma textura de sedução.

Se lá fora era um supermercado, aqui é um minimercado, do género de uma mercearia familiar onde se vai quando acaba alguma coisa em casa ou quando se quer comprar fiado. "Ponha o broche e a queca na conta, que no fim do mês passo por cá para lhe pagar D.ª Emília". Se todos os chulos fossem como a D.ª Emília, a prostituição entraria em crise. Ora aqui está uma boa frase para treinar as orações condicionais. Uma vez tentei ensinar a porcaria desta estrutura frásica a uma inglesa com cara de cavalo e o resultado não foi lá muito famoso.

Entro em casa. Cheira a mofo e este odor consigo senti-lo. Ligo as luzes e corro para a casa de banho para lavar as mãos. Desinfectar-me. Já repararam na quantidade de vezes que os outros coçam os tomates por dia? E, quer se queira quer não, na rua toca-se sempre em sítios onde outros tocaram após terem coçado os tomates ou outro qualquer elemento genital próprio e/ou de terceiros. Que nojo!

domingo, 5 de julho de 2009

Esboço de personagem (menina de oito anos)

Sempre tive medo do escuro. Desde que me lembro de ser eu que me lembro de ter medo do escuro. E o meu pai também me dizia que eu tinha medo do escuro, mas isso não impediu que também ele desaparecesse pelo meio do escuro. A minha mãe não dá muita importância ao meu medo do escuro. Sabe que tenho medo do escuro, mas diz-me que isso é normal e diz-me para pensar nas bonecas com vestidos cor-de-rosa que estão nas prateleiras daquela loja dos senhores de olhos em bico que têm um bebé também com os olhos em bico e rechonchudo e com os cabelos em pé. Mas eu não gosto das bonecas com vestidos cor-de-rosa que estão nas prateleiras daquela loja dos senhores de olhos em bico. Eu gosto é das Barbies e dos Kens e da casa da Barbie e do carro da Barbie e da mota da Barbie e da Barbie enfermeira e da Shelly que é a sobrinha da Barbie. Mas a minha mãe finge que não sabe que eu gosto é de Barbies. São muito caras, diz ela. E ela também tenta fingir que se esquece que eu tenho medo do escuro, senão não me deixava todas as noites sozinha com o meu irmão pequenito. Mas parece que não é irmão, parece que é só meio-irmão. Pelo menos é isso que diz a Ana que anda comigo na escola. E também foi a Ana que anda comigo na escola que me falou das Barbies e dos Kens e da casa da Barbie e do carro da Barbie e da mota da Barbie e da Barbie enfermeira e da Shelly que é a sobrinha da Barbie. A Ana lá da escola diz que as bonecas com vestidos cor-de-rosa que estão nas prateleiras daquela loja dos senhores de olhos em bico não prestam. E eu acredito na Ana, porque todas querem ser amigas da Ana e eu também quero. Mas eu agora não posso pensar nas Barbies. E tenho de ser forte e esquecer o meu medo do escuro. Tenho de cuidar do meu irmão ou meio-irmão como diz a Ana que anda comigo na escola. Mas eu ainda não sei se é irmão ou se é meio-irmão. E ele não tem medo do escuro. Ainda não tem idade para saber que o escuro pode fazer mal. O pai dele também desapareceu pelo meio do escuro, mas o meu irmão ou meio-irmão, ainda não sei, não tem idade para se preocupar com isso. Nem sabe que a mãe nos deixa quase todas as noites sozinhos para ir trabalhar. A mãe nunca me disse onde trabalhava, mas eu acho que ela tem um trabalho muito importante porque demora-se sempre muito tempo a arranjar. Ela nunca me disse, mas eu acho que é enfermeira, como aquela Barbie da Ana que anda lá na escola. Toma banho, passa meia hora em frente ao espelho a pintar-se e a pôr-se bonita. Até parece uma Barbie. Mas eu às vezes sou má e quando fico zangada com ela por ela nos deixar sozinhos no escuro digo-lhe que ela parece as bonecas com vestidos cor-de-rosa que estão nas prateleiras daquela loja dos senhores de olhos em bico. Digo-lhe que são feias e que ela é tão feia como elas. Mas depois sinto-me mal e no outro dia de manhã quando ela ainda está a dormir vou-lhe dar um beijinho e digo-lhe ao ouvido "gosto muito de ti mãe, ainda és mais bonita que a Barbie enfermeira da Ana lá da escola".