Ele não tem nome. Os pais, que já foram para o outro lado há um tempo que nem ele sabe muito bem, até o baptizaram. Mas à medida que eles foram fugindo da sua memória, também o seu nome e até a sua própria vida foram saindo dentro dele. Os pais gostariam que ele se estivesse especializado em alguma coisa. E, apesar de já não se lembrar dessas aspirações, ele lá cumpriu o sonho dos pais. É especialista em pés e em sapatos. A formação que teve foi-lhe dada pela sua existência, da qual ele já não tem consciência, a não ser quando passa as noites a olhar para o plasma na montra da agência de viagens.
Ele passa o dia deitado, num leito duro de mármore, tendo sempre um cão por perto. Ele, o mármore e o cão têm em comum o abandono. Um abandonou-se a si próprio, o outro foi, juntamente com o edifício onde foi encastrado, abandonado por habitantes que foram morrendo, enquanto o cão de raça que se transformou em rafeiro foi abandonado por aí num Verão qualquer. O homem já nem se considera como tal, à excepção de quando olha para o plasma na montra da agência de viagens. Não fala com ninguém, evita confrontar-se com rostos, mas conhece toda a gente pela maneira de andar, pela forma de pousar os pés, de os levantar, do barulho que fazem a bater no passeio (que em dias mais escuros lhe causam enxaquecas terríveis). Passa assim o dia inteiro. A estudar e a observar pés, sapatos, ténis, sandálias, botas.
Mas à noite sonha. Abandona por momentos o mármore duro e frio, ergue-se e caminha em direcção à montra da agência de viagens. Fica estático a olhar para o plasma onde desfilam destinos com sol, praias, casas com formas esquisitas, castelos, barcos, mulheres exóticas e sorridentes. Permanece assim durante meia hora, quase que hipnotizado, com o cão plantado a seu lado a tentar imaginar os cheiros que se escondem por trás das paisagens mostradas pelos cristais do plasma. O homem não quer saber dos cheiros. Só pensa em como é que vai conseguir levar a soleira de mármore para aquelas praias, aquelas casas com formas esquisitas, aqueles castelos, aqueles barcos e convencer aquelas mulheres exóticas e sorridentes a deitarem-se na pedra de tons rosáceos.
7 comentários:
Não seria, certamente, este o sonho de Gedeão, aquele que pula e avança...
Mas serve (exemplarmente) para olharmos melhor o umbigo!
abraço!
Na frieza do mármore (boa para Verão) um discurso dos sonhos. Gostei.
Não é uma "estória" de encantar, mas nem todas o podem ser.
Mas é uma "estória" bem contada, onde não falta o sonho de um lugar de sonho.
Muito bem-vindo meu caro amigo cibernauta. Duas coisas: se ele teve formação pela existência, porque não tem ele consciência? ter consciência da inutilidade da consciência é ainda assim afirmar a consciência. :)
Segundo: olhar não é só ver faces, é olhar uma parte e saber observar um conjunto.
Mais um belo texto, é da praxe.
Abraço.
Sarava!
A 1ª leitura entristeceu-me!
Comovi-me com a realidade comum do abandono.
A 2ª leitura fortaleceu-me... reparei que o "sonho (ainda) comanda a vida"
A 3ª divertiu-me... com as descrições ritmadas! Desde os cheiros, aos pés... às gajas... e ao pobre cão especado na sua companhia em cima do chão frio!
beijinhos e já te linkei lá;)
Reconheço tudo. Passa tudo por mim. Até o mármore, embora cinzento de sujo. Parece que não vejo, mas vejo-o(s) sempre. Levo-os comigo e garanto que não vamos para nenhum plasma.
Um beijo.
Magnifico texto!
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