domingo, 28 de junho de 2009

O senhor que se esqueceu que era senhor II

Pés e mais pés, que parecem querer saltar dos sapatos, dos ténis, pretos, vermelhos, brancos e movimentando-se freneticamente. O batuque dos pés contra o solo ressoa-me no crânio, fazendo eco na minha cabeça. Os ossos parecem condutores acústicos que fazem vibrar todo o meu corpo e aceleram-me a pulsação. Estilhaçam-me. Continuo deitado no solo, mas tenho medo de me levantar. Tenho medo que tantos passos infinitos violentos originem um terramoto com crateras a romperem o asfalto da avenida e tudo. Situação de desespero. Eu deixei de ser eu para não tomar decisões e agora, aqui estou, colado a uma soleira, aterrado de medo, com o meu cão a olhar seriamente para mim, a ler-me o pavor no corpo e também ele a apavorar-se. Que fazer? Olho para o céu, mas hoje não há nuvens, o céu está limpo como se uma grande catástrofe se fosse abater sobre o mundo. Não me posso entreter com as nuvens carregadas que me fazem recordar os filmes de terror que já não vejo há muito tempo. Pensado bem, nuvens carregadas dispensam-se... se calhar ainda me aterrariam mais, ainda dariam mais força de gravidade à terra e eu nunca mais me conseguiria erguer desta soleira de mármore rosa, que é uma mulher, de extremos, ora fria ora quente, conforme o tempo. Mas sempre poderiam aparecer aquelas nuvens brancas, imaculadas, a fazer lembrar algodão, como apareciam nos westerns daquele tempo em que as mulheres diziam que eu era parecido com o John Wayne. Mas acho que nunca me pareci com ele, talvez mais com o Camus, já que não chorei no funeral da minha mãe. Mas não importa, hoje já não me pareço com ninguém, nem comigo e, para além disso, já não choro.

E elas continuam, as pessoas que têm nome e são pessoas, a não dar descanso ao chão. Sempre a mexer, a pisá-lo, a maltratá-lo, a desrespeitá-lo, com os seus sapatos e ténis. Algumas até usam botas de biqueira de aço para o magoar. E todas têm medo de lhe tocar, receiam a imundície, receiam os passos de todos os que o pisaram anteriormente, receiam a merda dos cães, as beatas usadas e os que fazem do chão a sua casa. Não lhe tocam. Nem ousam. E continuam, continuam, num ritmo assustador, emitindo ruídos medonhos que não consigo reproduzir e se amplificam nos meus ossos que parecem querer esfrangalhar-se perante tanto decibel. Começo a sentir palpitações. Como se estivesse dentro de um carro daqueles que por vezes passam aqui à noite, com luzinhas azul fluorescentes nos chassis e asas que fazem lembrar as naves descritas nos livros de bolso de ficção científica que comprava ao alfarrabista do Terreiro do Paço por dez paus. E o medo que não me abandona, que brota de dentro de mim. Encolho-me, flicto os joelhos e encosto-os à barriga. Mas nenhuma sensação de protecção uterina me safa. O que fazer? Eu que deixei de ser eu para não tomar decisões e agora, aqui estou, colado a uma soleira, aterrado de medo, com o meu cão a olhar seriamente para mim, a ler-me o pavor no corpo e já ele também apavorado. Começa a ladrar, a rodopiar em círculos, cada vez mais rápido. Tenta em vão abrandar a rotação da terra com o seu movimento em espiral, na esperança que isso abrande o pisar violento dos pés da multidão no chão. E continua. Não desiste. Como se quisesse congelar o mundo. Esforça-se para que as pessoas parem, que sejam imóveis e que lhe dêem, e a mim também, um momento de paz infinita.

Sem resultado. O batuque amplifica-se mais e mais. Não há escapatória. O medo não me deixa erguer. Resta-me contar, como fazia em casa da minha avó quando estava trovoada. Contar o tempo que distava entre a luz e o som, enquanto a minha avó rezava o terço a pedir que o Senhor deixasse de ralhar. Se a soma dos números que me saltitavam no cérebro desse sete era o Apocalipse que estava a entrar no mundo. Mas isso nunca aconteceu. Conto o ribombar dos passos entre cada latido do cão. Sete. Vinte e cinco. Trinta e quatro. Dezasseis. Quarenta e três. Murmuro os números com a minha voz presa, enferrujada de se ter calado há tantos anos. O cão continua a ladrar, mas são muitos passos para a minha cabeça. Um. Seis. Não sei... Quero adormecer e não consigo. Tento recordar-me dos passos contados entre cada latido do cão. Sete. Vinte e cinco. Trinta e quatro. Dezasseis. Quarenta e três. Não falta muito para o mundo acabar.

1 comentário:

Gasolina disse...

A ti a Distinção Árvore das Palavras do mês de Julho.

Obrigado pelo tanto que me tens dado ao longo destes (quase) 2 anos.


Um beijo, abraço.