sábado, 21 de março de 2009

Esboço de personagem (Dona Rosa)

Todos os dias penso que o dia de amanhã será o meu último dia neste mundo. Mas, dia após dia, continuo neste mundo e um número infindável de seres acabam por abandonar o mundo em dias que podiam ter sido os últimos da minha existência. Amanhece… abro os cortinados e os estores e vislumbro o cemitério... aparece-me sempre envolto numa neblina… como aquelas ilhas encantadas que só se alcançam muito tempo depois de serem avistadas…. será a minha última morada… e nem é assim tão longe, é só atravessar a rua… pernoitarei lá eternamente… nos amanhãs que podiam ser ontens.

Todos os dias passam por mim como se fossem os últimos. Vivo no receio de cada instante ser o derradeiro, mas acabam por ser os derradeiros instantes de seres que nunca imaginaram que aquele instante seria o derradeiro… Ainda na semana passada o miúdo que se despistou na minha avenida… Nem deve ter imaginado que aquela guinada seria o último instante da sua curta existência…

Estou velha… e quero fazer de cada momento um momento de velhice…



Pressinto-me na antecâmara da morte, e tento viver como vivem as pessoas que se sentem na antecâmara da morte… esperando… por um amanhã que possivelmente não existirá. Mas, até agora, e passados noventa e dois anos, todos os amanhãs me apareceram… No entanto, amanhãs houve que não apareceram ao meu marido, nem aos meus filhos, nem ao meu neto, nem ao bebé da vizinha do lado que morreu numa incubadora…

Hoje foi mais um amanhã que me apareceu… comer quatro vezes… tomar os medicamentos... para o Parkinson, para a artrite reumatóide, mais as vitaminas e o cálcio... ir cinco vezes à casa de banho… ver programas na televisão… e, acima de tudo, esperar… imóvel… visto que o meu corpo quer petrificar-se e a minha mente não a quero a vaguear…. estática… esperar em silêncio …

6 comentários:

Rafeiro Perfumado disse...

E um dia será mesmo o último. A melhor maneira de não pensar nisso é viver como se isso fosse um facto, não uma fatalidade.

Abraço!

Soul, Heart, Mind disse...

parece-me que estará já morta ao sentar-se dia após dia à espera do momento derradeiro e vendo todos partir. nada há de pior que a morte em vida.
belo esboço o desta personagem, apesar de triste. esboço por esperar o momento derradeiro. personagem por ser espectadora da vida, alheia à vontade do destino-narrador.

Alberto Oliveira disse...

... é o retrato possível do terminar de uma vida. Que o nascer e o morrer são os actos mais infalíveis da nossa existência...

Mateso disse...

A longevidade ...e o amanhã que demora.
Bj.

Andesman disse...

E chega um tempo em que são tristes os amanhãs, que outrora foram esperança luminosa.

CamilaSB disse...

quiçá um dia, a Dona Rosa, desliga a TV...e liga a imaginação...até pode fazer um poema, mesmo que seja só com a mente...vasculhar nas memórias da juventude...enquanto isso, suaviza a doença...mata a inércia...e ilude a morte! Bjs