Johann passeava pelas ruas da cidade. Deambulava pela zona dos antiquários, observando o meio envolvente com minúcia e pormenor. Sabia que procurava algo. O quê, não o podia enunciar. Nunca gostara de teorias cíclicas que determinassem o indivíduo. O inesperado deveria fazer parte do que é, e que por sê-lo se torna esperado depois de não o ter sido.
Errava tropeçando em cadeiras e absorvendo o húmido cheiro da madeira bafienta. A dado momento parou e dirigiu o olhar para a sua direita... e viu-o. Incólume e cercado por velharias. Estava imóvel. Aguardava o fim do prelúdio que não tardaria a dar lugar à fuga. Johann aproximou-se dele e reconheceu todo o seu potencial. Levou-o para casa.
Anoitecera... ambos se contemplavam num diálogo mudo que os preparava para a mútua incorporação. Johann principiou por tacteá-lo deslizando os dedos sobre os seus contornos. Reconheciam-se...
Finalmente Johann pegara no arco e uma primeira manifestação da união ressoou grave pelas paredes de pedra. O errante estava absorto durante o primeiro contacto auditivo que tivera com ele:
- Agora já sei que estás preparado para me ouvir. – dizia-lhe Johann – As formas existem, mas para as preenchermos deparam-se-nos infinitos caminhos que preenchem toda a necessidade de imprevisto que existe.
Sem perder tempo Johann agarrou firmemente o violoncelo e, ininterruptamente, brandia o arco nas cordas e o que era som transformara-se em imagem... e, nesse momento, ele viu: a sua mulher morria, o seu filho morria, viu a sua própria morte. No entanto, a alma continuava protegida da corrupção do que é corrompido. A sua alma possuía as cordas através do arco e as imagens sucediam-se: canhões trucidavam corpos de homens, de mulheres, de crianças; chamas queimavam casas e reduziam pessoas a cinzas. De pó foste feito, pó tornarás a ser. O desfile prosseguia: uma bomba, de grandes proporções, fazia desaparecer tudo o que existia nas periferias do local onde fora arremessada; crianças nasciam condenadas a não viver, fruto da maldição de serem inocentes. Em laboratórios criavam-se vírus mortíferos que dizimaram a espécie humana, inclusive os seus criadores, descendentes de Pandora. Era o advento do apocalipse: chagas e sangue. O que existia fora sugado pelo que não existia e chegou o juízo final. O juiz do trono branco queimou o livro dos mortos e a alma que animava o violoncelo desaparecera, mas como que por inércia, o instrumento prosseguia a sua incógnita melodia. Escreveu-se um novo livro da vida.
O violino desaparecera...
Um homem num paraíso, acompanhado por uma mulher, uma serpente e uma maçã. A expulsão. O irmão que matou o irmão. O recomeço de toda a maldição.