terça-feira, 3 de julho de 2007

O texto medieval da semana (tentativa de criar um diálogo de despedida entre mestre e discípulo)

Recebi a minha educação de um sábio irmão de minha mãe. Godofredo era um monge que me recebia num mosteiro nas cercanias de Clermont. O preceptorado de meu tio iniciara-se tinha eu cinco anos, findando-se quando atingira o meu décimo terceiro aniversário. Recordo-me do nosso último encontro enquanto mestre e discípulo. “Raimundo, temo que os meus humildes ensinamentos cessem brevemente…”. Lembro-me de ter colocado em Godofredo um olhar inquisitivo, raramente dialogava com ele através de palavras; a palavra era algo que exigia demasiada sabedoria para poder manuseá-la com meu tio. “Os teus olhos interrogam-me… sempre me interrogaram desde que te comecei a falar do latim, da sagrada doutrina de Deus, das leis que sustentam o mundo… és muito curioso rapaz, muito curioso…”. Sempre que meu tio-monge se esquivava dos meus silêncios inquisitivos o meu olhar adquiria uma tonalidade que enfatizava a curiosidade. “Pois… sabes meu rapaz, recordas-te de te ter falado de um grande homem? Recordas-te de te ter falado de Bernardo? Claro que te recordas… Pois bem, juntar-me-ei a ele no Mosteiro de Clairvaux.”

À revelação seguiu-se um largo silêncio… Meu tio-monge cogitava a melhor maneira de estruturar os seus pensamentos de forma a poder partilhá-los. “Sabes Raimundo?”. Encolhi os ombros como que suplicando para que ele respondesse à sua própria questão. “O homem caminha sempre para a sua perdição e sabes porquê? Porque não se limita a possuir e a querer possuir o entendimento das coisas. Se bem que o valor moral do desejo de se adquirir o entendimento de algo seja discutível, não é esse desejo que impele o homem para um fim moralmente reprovável. Repara nos animais; são livres de pecado porque se limitam a contemplar e a viver a vida que Deus lhes deu. O homem busca o entendimento das coisas e, pior que isso, o desejo de possuir essas mesmas coisas. Ao homem não lhe basta perceber o que o rodeia, necessita de dominar o que o envolve, reclamando o que pensou entender como seu. Mas o que é não pertence ao homem, pertence a Deus, e o desejo de se assenhorear do que nunca poderá ser seu é um sacrilégio. Além disso, o homem, mesmo quando pensa que possuiu qualquer objecto ou qualquer pensamento, nunca chegou a possuir coisa alguma. Ao homem não lhe basta conhecer, tem de se apropriar do que conhece e subvertê-lo para poder reclamá-lo orgulhosa e soberbamente como seu. Mas engana-se, pois a posse é ilusória e pecaminosa”.

Ambos reflectimos sobre as palavras e os seus sentidos. Germinava uma pergunta em mim que o silêncio não podia comunicar. “Mas há sábios que transformam pedra em ouro, subvertendo dessa forma as características e as qualidades que Deus deu às coisas”. Godofredo coçou o queixo.

“Não Raimundo, não há homens que consigam transformar pedra em ouro e, mesmo que o conseguissem, o ouro continuaria a ser simplesmente uma pedra, sendo que a mutação da natureza das coisas seria apenas ilusória. Os únicos homens que têm poder para dominar o que entendem não se atrevem a fazê-lo, porque são verdadeiramente sábios; a sua sabedoria ensina-os a contemplarem apenas as coisas e a testemunharem as manifestações divinas, evitando a tentação de se proclamarem senhores de determinada verdade… Estes salvam-se.”

13 comentários:

beleza de mulher disse...

que bela conversa hummm loool

Gasolina disse...

Tentativa, não!

GOLD!

Apreciei a forma e o conteudo. As personagens e o cenário.O conselho e o respeito. A dúvida e a sapiência.

Muito BOM!

Um abraço, fica bem.

S* disse...

Fantástico!
:)

**

Bxana disse...

Acabei de ter um dejá vu das minhas aulas de cultura medieval, nos idos anos de faculdade...:)

mymind disse...

gostei =)
bjinhos

vieira calado disse...

Excelente texto.
E obrigado pelo comentário ao blog o cão Merdock.
Um abraço

Anónimo disse...

e como eram sim senhor sabios!beijinho!obrigada pelo o coment!

susana disse...

Gostei do texto e é bem verdade!Quem é verdadeiramente sábio contenta-se em contemplar!
Já agora, um pequeno aparte....a falsa modéstia é a maior das vaidades...ehehe. Resumindo, até sou pouco vaidosa!
beijos miss

Diogo disse...

«Ao homem não lhe basta conhecer, tem de se apropriar do que conhece e subvertê-lo para poder reclamá-lo orgulhosa e soberbamente como seu»

Em Bush, Cheney, Rumsfeld e quejandos, esta caraterística é elevada ao infinito.

eskisito disse...

Ou seja, tudo depende do ponto de vista...eu cá prefiro o ouro.

Anónimo disse...

Uma bela maneira de transaccionar ideias. E cultura, saber e bom gosto.

Parabéns pelo belo blog e obrigado pela visita e comentário.

Ainda a tempo: este blog vai para a minha "lista branca".

CNS disse...

Parabéns pelo texto. E também pelo blog.

Obrigada pela visita e pelo comentário

foryou disse...

Belo texto! Grandes sábios. Gostei!