terça-feira, 31 de julho de 2007

Retratos de vidas impossíveis de retratar

(continuação)

– Nunca saberás o que aquilo foi… houve gajos que vieram de lá sem uma quarta-feira… mesmo do meio para as pontas… houve um gajo da minha companhia, acho que era o Dias, ou seria o Correia? Já nem sei… o gajo meteu-se lá com uma preta, nem imaginas… a gaja besuntou-lhe o coiso com umas ervas manhosas e aquilo acabou por cair… Dizem que agora o gajo endoideceu…

– Pudera…

– Quando passa um avião o gajo foge de casa a gritar que lhe estão a roubar as telhas…

– E a ti?

– A mim o quê?

– Aquilo não te fez impressão?

– Eh pá, claro que fez… Há coisas que fiz que nunca contei à minha mulher… Há coisas que ainda hoje sonho com elas… mas é a vida… o que vale é que nunca fugi, ouviste bem? Nunca fugi…

– Chegaste a matar alguém?

– Merda de pergunta… se um gajo vai à guerra tem de matar…


– E não sentes remorsos?

– Remorsos? Eu… que nunca fugi? Há lá agora espaço para remorsos…

– Mas eu sinto…

– Bem me parecia… sentes remorsos por não ter ido à guerra?

– Não…

– Então?

– Matei uma mulher…

– Deixa lá isso, se soubesses as que matei só por não quererem ir para a cama comigo…

– A sério??!!

– Claro que não… estava só a brincar

– Mas mataste gente?

– Já te disse que sim... Muita… Houve uma vez que nos mandaram enterrar pessoas de uma aldeia até ao pescoço e os oficiais começaram a fazer pontaria às cabeças rentes ao chão com pedras e passaram-lhes com os jipes por cima… julgas que isto sai da cabeça de um gajo? Julgas que não choro? Às vezes choro mas nunca fugi… quero que saibas que nunca fugi…

– Sim… já sei que nunca fugiste… Mas eu não consigo viver com a morte de alguém na minha consciência…

– Mas mataste de propósito?

– Não… ia a conduzir e atropelei uma mulher… ofusquei-me com a luz do sol e atropelei-a… não me recordo muito bem desse momento, só me lembro de um fino fio de sangue escorrer-lhe pelo lado direito da boca…

– Já pensaste que se calhar não tiveste culpa?

– Não importa… a morte daquela mulher não me deixa dormir… o sentimento de culpa é tanto que parece que o mundo vai acabar…

in Café por Acaso

10 comentários:

Anónimo disse...

A coisa está descrita de tal forma que até eu que estive na guerra colonial, na sua fase terminal, e nunca matei ninguém, me começo a sentir culpado de alguma coisa. Fica bem

Marta disse...

A chave da libertação é o perdão: de nós mesmos e da culpa!

Tens jeito para escrever livros! :)

A. João Soares disse...

Agradeço a visita e o comentário no Do Mirante.
Boa férias, ou se ja as gozou, bom mês de Agosto.
Abraço

Gasolina disse...

O exorcismo da palavra.
Se se falar obtém-se o perdão?
E se se chorar, o botão do rwd faz o tempo retornar e nada aconteceu?

beleza de mulher disse...

olha que grande conversa heheheh

Conguitos disse...

O snetimento d eculpa é algo que nos deixa muito desconfortaveis. Este post leva-nos a todos a viver esse sentimento

S* disse...

Quantas culpas e quantos perdões se buscam? Quanta compreensão, quantas palavras de empatia face a sentimentos que nem os próprios são capazes de definir, explicar, descrever e compreender? Todos precisamos de uma mão agarrada à nossa que nos dê força e nos garanta que não estamos sozinhos na dor.

**

Gasolina disse...

Sem culpas sem perdões.
Só desejo de um belo fds

astuto disse...

Volto sempre aqui porque acho que escreves bem. Este diálogo é delicioso! O pormenor do "avião a passar" e o indivíduo pensar que lhe "estão a roubar as telhas", está muito bem apanhado.

Cumprimentos e continuação de boas postagens.

Anónimo disse...

Também não consigo evitar um elogio à forma como escreves, é difícil prender-me a uma leitura...
Confesso que delirei com a "brincadeira" das mulheres que se recusaram a dormir com este herói atípico:))).