terça-feira, 31 de julho de 2007

Retratos de vidas impossíveis de retratar

(continuação)

– Nunca saberás o que aquilo foi… houve gajos que vieram de lá sem uma quarta-feira… mesmo do meio para as pontas… houve um gajo da minha companhia, acho que era o Dias, ou seria o Correia? Já nem sei… o gajo meteu-se lá com uma preta, nem imaginas… a gaja besuntou-lhe o coiso com umas ervas manhosas e aquilo acabou por cair… Dizem que agora o gajo endoideceu…

– Pudera…

– Quando passa um avião o gajo foge de casa a gritar que lhe estão a roubar as telhas…

– E a ti?

– A mim o quê?

– Aquilo não te fez impressão?

– Eh pá, claro que fez… Há coisas que fiz que nunca contei à minha mulher… Há coisas que ainda hoje sonho com elas… mas é a vida… o que vale é que nunca fugi, ouviste bem? Nunca fugi…

– Chegaste a matar alguém?

– Merda de pergunta… se um gajo vai à guerra tem de matar…


– E não sentes remorsos?

– Remorsos? Eu… que nunca fugi? Há lá agora espaço para remorsos…

– Mas eu sinto…

– Bem me parecia… sentes remorsos por não ter ido à guerra?

– Não…

– Então?

– Matei uma mulher…

– Deixa lá isso, se soubesses as que matei só por não quererem ir para a cama comigo…

– A sério??!!

– Claro que não… estava só a brincar

– Mas mataste gente?

– Já te disse que sim... Muita… Houve uma vez que nos mandaram enterrar pessoas de uma aldeia até ao pescoço e os oficiais começaram a fazer pontaria às cabeças rentes ao chão com pedras e passaram-lhes com os jipes por cima… julgas que isto sai da cabeça de um gajo? Julgas que não choro? Às vezes choro mas nunca fugi… quero que saibas que nunca fugi…

– Sim… já sei que nunca fugiste… Mas eu não consigo viver com a morte de alguém na minha consciência…

– Mas mataste de propósito?

– Não… ia a conduzir e atropelei uma mulher… ofusquei-me com a luz do sol e atropelei-a… não me recordo muito bem desse momento, só me lembro de um fino fio de sangue escorrer-lhe pelo lado direito da boca…

– Já pensaste que se calhar não tiveste culpa?

– Não importa… a morte daquela mulher não me deixa dormir… o sentimento de culpa é tanto que parece que o mundo vai acabar…

in Café por Acaso

sábado, 28 de julho de 2007

Eu comi a tua gaja... lol


Sempre existiu aquilo a que alguns chamam de "muletas" na linguagem. Com a democratização da comunicação multimédia apareceram inúmeras dessas "muletas" nesse contexto linguístico, sendo que, na minha humilde opinião, o "lol" é a mais engraçada de todas. Primeiro, porque o "lol" se utiliza quando as coisas aparentam ter piada. E em segundo, o "lol" pode safar-nos de todas as complicações comunicativas que aparecem via internet.

Assim, podemos dizer a maior barbaridade que se a seguir digitarmos as três letrinhas mágicas (e não estou a falar da palavra mãe) a barbaridade passa a graçola e é perdoada. Por outro lado, a dimensão comunicativa da internet não permite ter uma percepção real da reacção dos nossos interlocutores. Não sabemos se estão a achar piada ou se estão a ficar chateados com a conversa, daí que, pelo sim pelo não, convém utilizar compulsivamente o "lol".


E agora, depois de exposta a tese, um exemplo prático (só para dizer que sei construir textos a defender uma ideia). Estamos a comunicar no MSN com um amigo. E dizemos-lhe: "Sabes o que aconteceu ontem?". Resposta: "O quê?". Continuação: "Comi a tua gaja"...

Naquela ínfima fracção de segundo em que o nosso interlocutor fica mentalmente paralisado (a pensar se é verdade ou se é mentira que lhe comemos a gaja e em que o cérebro dele emite estímulos para ele pegar no carro e vir a nossa casa esvaziar uma caçadeira nos nossos abençoados miolos) digita-se o "lol". Ao que ele irá responder: "lol". E podemos continuar a servirmo-nos da namorada do nosso amigo à vontade, tão à vontade como nos servimos do "lol". E como o texto não tem nem interesse nem piada, a ver se não me esqueço de o acabar com um grande LOL.

terça-feira, 24 de julho de 2007

Crónica de um cerco medieval e infernal

Continuação do Assassino da Lama

O Jovem, filho do Gordo, cercou Vitry. A fisionomia das pessoas evoluíra de medo para pânico. Continuava alheado ao que se desenvolvia à minha volta e mortificava-me pela fome. Não, eu não era digno de comer os mantimentos que escasseavam às pessoas. O meu olhar recaía constantemente sobre as pedras dispostas no chão, tentando perceber-lhes uma vontade que me permitisse afirmar que fora uma pedra que assassinara por sua vontade e que não fora a minha vontade a matar através de uma pedra. Inútil…

A situação em redor de Vitry parecia complicar-se. As defesas da cidade revelavam-se demasiado frágeis para deter a impetuosidade do Jovem. Finalmente, tomava consciência do que se passava à minha volta e pela primeira vez questionei-me: “Será a morte bem-vinda?”. Não, não podia morrer ali, era demasiado fácil morrer e não viver com a culpa a mortificar-me a alma. Terá sido esse o meu verdadeiro pensamento, ou seria apenas um pretexto para lutar cobardemente pela sobrevivência? Todos nós nos enganamos a nós próprios…

Pensei em evadir-me da cidade, mas com toda a certeza seria impossível escapar-me por entre o cerco do Jovem. As pessoas mais frágeis refugiaram-se na igreja, mas pareceu-me demasiado cobarde e impuro partilhar um abrigo divino, quando albergava em mim recordações de acções sacrílegas. Ajudar os locais e lutar? Não, não podia morrer (ou será que não queria?). Escondi-me num estábulo e cobri-me de feno para me ocultar de qualquer perigo.

As tropas de Luís entraram na cidade chacinando as forças resistentes. Incendiaram as muralhas e o fogo propagou-se às casas e das casas à igreja. Os gritos apocalípticos abafaram as preces aflitas, o ar fora invadido pelo cheiro da madeira queimada. O meu coração pulava e bátegas de suor percorriam o meu corpo. Ao cheiro da madeira ardida juntava-se-lhe um outro que tornava a respiração difícil e horrível – o da carne consumida pelo fogo. Os gritos tornavam-se-me imperceptíveis silenciados pelo turpor em que o meu corpo entrara. Fugi do estábulo, visto que o meu esconderijo principiava a ser consumido por labaredas dançantes. Dirigi-me para a rua e deparei-me com um cenário infernal: grande parte da cidade ardia, incluindo a igreja onde milhares se haviam refugiado.

Naquele momento todos os meus pensamentos cessaram, o omnipresente remorso fora para não sei onde e o mundo parou. A minha visão abarcou soldados mortos, espalhados pelo chão como pedras inertes. Permaneci numa quietude intemporal, estático e horrorizado.

As tropas reais passavam por mim, mudas, ignorando-me. Nos rostos dos soldados percebia-se um horror que os tornava cabisbaixos apesar do triunfo. Perguntei a um deles apontando para a igreja “Eles estavam lá dentro?”. O homem acenou afirmativamente com a cabeça e prosseguiu a sua silenciosa marcha.

Primeira nota mais ou menos editorial do blog

Pensei duas vezes antes de escrever este post justicativo e explicativo. Em primeiro lugar, quero agradecer a todos os que visitam este espaço e, de uma maneira ou de outra, ajudam a transaccionar ideias (que é esse o objectivo deste blog). Depois de ter analisado a maior parte dos comentários feitos aos posts sinto-me na necessidade de referir o seguinte: os textos constantes no blog não dizem respeito ao meu estado de espírito. A metodologia para os criar é simples: trata-se de ficcionar narradores, personagens e acontecimentos. Existe também o caso, como o da mulher que vendia poemas, que partem da minha observação do real, mas em que o protagonista não sou eu. Depois, existem ainda alguns (poucos) artigos de opinião, que ou correspondem à minha maneira de ver as coisas ou a uma forma provocatória de as abordar.
Portanto, quando lêem um texto aparentemente triste, não quer dizer que eu o esteja. Não há motivo de preocupação. Aqui não se procura evidenciar a verdade, mas sim criar situações verosímeis, com o objectivo de transaccionar ideias e reflectir sobre o mundo e, especialmente, sobre os outros.

Obrigado por tudo.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Alcoólicos Anónimos. Hoje é quinta-feira

Quando tudo nos parece fugir… quando tudo o que nos pertence parece ser tragado pelo turbilhão do real… quando fazemos com que tudo se desvaneça… que tudo desapareça… quando fazemos com que nós deixemos de ser nós… quando já nada nos aparece para nos dar uma migalha de felicidade… quando todos os laivos de alegria nos aparecem interditos… vedados…

Adormecer eternamente com uma garrafa de absinto como mortalha…
Adormecer eternamente… adormecer eternamente da mesma forma como se viveu… em solidão… afogado não sei bem em que tristezas e em que mágoas… Tomara que adormeça sonhando… mas hei-de adormecer rodeado de nada, porque tudo é vazio.


Adormecer eternamente afastado de tudo, afastado da própria vida, afastado dos que amei, porque quando se adormece como eu hei-de adormecer é porque já não existe a possibilidade de se amar seja o que for.


Adormecer eternamente com uma garrafa de absinto como mortalha…

Adormecer em solidão… Adormecer por opção…


Adormecer eternamente amortalhado numa garrafa de absinto…

Nota: depois de duas semanas de ausência das reuniões de Alcoólicos Anónimos devido a um dessaranjo cerebral, esta é a última sessão dos AA narrada por este blog.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

O fragmento de teoria literária da semana

Em relação à ficção: estará dentro ou fora da realidade? E a realidade, estará dentro ou fora da ficção? Existirá uma relação entre o real e o ficcionado? Podemos encarar o real como o que nos rodeia; mas a ficção, terá ela uma relação com o real, mesmo que essa relação não seja mais que uma relação de antonímia? Se assim fosse poderíamos definir a ficcionalidade como não sendo o real. No entanto, se a relação de antonímia entre real e ficção fosse verdadeira, realidade e ficção seriam indissociáveis. Mas será mesmo assim?

Encarando o real como um inferno cruel, onde cada acção representa um sujar de mãos para a existência de quem a executa, poderemos questionar o seguinte: sendo o real constituído por factos cruéis, será a efabulação/ficção um refúgio?

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Retratos de vidas impossíveis de retratar

– Já não nos víamos desde aquele dia em que fomos às sortes…

– E em que as sortes separaram as nossas vidas…

– Ouve lá… Sempre é verdade aquela história que o pessoal contava?

– Que história?

– Que partiste um braço de propósito para não ir à guerra?

– Isso é uma história tão real como as histórias da nossa infância…

– Como assim?

– Sei lá… por exemplo, lembras-te daquela história do Domingues?

– Se me lembro pá, se me lembro… Diziam que o gajo tomou banho numa lagoa da serra em pleno Inverno só para poder afirmar que a água estava fria…

– Exacto… Estiveste lá? Viste?

– Não…

– Eu também não…

– E?

– Quer dizer que não podemos saber se a história é realmente verdadeira…

– Onde é que queres chegar com esse palavreado?

– Que ninguém pode saber se eu parti um braço propositadamente para não ir à guerra…

– Sim está bem… Mas é verdade ou mentira? Conhecendo-te como te conheço sou capaz de jurar que é mentira…

– Mas é verdade…

- Verdade? Ó Castro, não pensei que fosses gajo para fazer isso…

– Também nunca pensei que fosses gajo para ir à guerra só porque sim…

– Eh… calma aí…

– Vamos mudar de assunto… não nos víamos para aí há trinta anos e devemos ter assuntos mais divertidos para partilhar.

– Tens razão… mas fugires da guerra… como é que aguentaste ficar aqui e saber que os teus camaradas estavam a morrer em África? O Brandão, o Costa, o Melo, o Magalhães, o Silva, o Fernandes, o Gama, até o duro do Domingues… ficaram lá todos e tu aqui a assistir a isso, sem fazer nada?

– Talvez tenha sido o acaso que me fez ficar…

– Badamerda para o acaso… não vou nessa cantiga. Se fugiste deliberadamente da guerra foi por opção, não por acaso. Se tivesses tido o azar de nascer sem um tomate aí sim seria um acaso… mas tu optaste por não ir à guerra e por deixar morrer os outros sem ti… tu optaste…

– Talvez tenhas razão. Mas encontrarmo-nos depois de todos estes anos foi um acaso…

– Sim, mas isso não importa, isso não vai mudar as nossas vidas…

– Viste-os morrer? Aos nossos? Ao pessoal da nossa terra?

– Só ao Domingues e ao Costa… Os outros não estava com eles… Ainda hoje sonho com isso… O Domingues e o Costa. Lembras-te quando fomos com eles roubar o vinho ao vigário?

– Se me lembro… bem divertido e foi bem feito…

– Pois foi… o vigário era um grande filho da puta… o vigário é que devia ter pisado a merda da mina que o Costa pisou…

– O Costa morreu por causa de uma mina?

– Ele e o Domingues… Estavam a disparar contra a gente e desatámos a correr para um sítio onde nos pudéssemos esconder. O Costa colocou a pata em cima de uma mina e parou. Ficámos todos em pânico… sabes o que é que o Domingues fez? Tu sabes como era o Domingues… mandou-nos continuar a correr e foi pelo meio do fogo cerrado até ao pé do Costa…

– Também fugiste?

– Eu não fugi… só procurei um local mais guarnecido para poder cobrir o Domingues… Eu não fugi, nunca na minha vida fugi a nada… O Domingues tentou desarmadilhar a mina… e o Costa ali quietinho como a estátua do Cristo-Rei e as balas a passar de um lado para o outro. Estávamos todos a rezar para que o Domingues conseguisse tirar dali o Costa… Depois uma bala atingiu o Costa e buuuummm… ficaram os dois esfrangalhados…

– Porra… Ao menos tu safaste-te!

– Safei-me mas não fugi… nunca fugi…

– Claro…

– Tu não sabes o que aquilo foi… os gajos que não estiveram lá não podem saber… podem escrever-se muitos livros e fazer muitos filmes que os gajos que não estiveram lá nunca poderão saber o que aquilo foi…

in Café por Acaso

domingo, 15 de julho de 2007

O assassino da lama

Caminhavas delicada por uma viela com um passo tão harmonioso que os teus pés não se enterravam na lama. Um sujeito acercou-se de ti agarrando-te e forçando-te a entrares num beco deserto. O sangue começou a correr rápido pelas minhas veias e segui-vos. O homem queria violentar-te, queria conspurcar o corpo sagrado em que eu desejava concretizar os meus sonhos e as minhas abstracções. Rasgava-te a roupa, acompanhando a tentativa forçada de coito com frequentes murros na tua face… O som dos teus gritos ressoava em mim e fui invadido por uma raiva nunca antes sentida.

O meu olhar deparou-se com uma pedra, diferente das outras não só por ter uma extremidade aguçada, mas principalmente por senti-la como um prolongamento do meu corpo (anos depois aprendi que cada pedra possui a sua própria natureza). Afastei o sacrílego da tua carne e principiei a desferir-lhe inúmeros golpes no crânio e no rosto, assistindo maliciosamente à lenta desfiguração da face da besta.

Sentia luxúria ao observar-lhe o sangue jorrando pela face, ensopando-se na roupa e maculando o chão enlameado. O sangue a jorrar com a intensidade das águas das enxurradas… provocadas por temporais repentinos. Mesmo depois do homem desfalecer, prossegui com os meus movimentos selváticos que lhe dilaceravam a carne meia viva meia morta, desgarrada, nacos que já nem sequer a um cadáver pertenciam. E a tentação da carne foi castigada com a flagelação da carne.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Paixões instantâneas

Andar de metro tem poucas coisas positivas. Tem a vantagem de nos colocar mais rápido num determinado ponto da cidade, mas, como nem tudo é perfeito, obriga-nos a subir e a descer escadas e mais escadas e a termos de passar por portas estreitas que parecem saídas da terreola do Frodo Baggins, em tamanho, não em estética, diga-se.

Outra das vantagens é a viagem de metro não ter pontos para distrair a nossa atenção. Não há paisagem para ver e, na ânsia de não se entrar no desespero de nos sentirmos vazios e autómatos, tentamos a todo o custo focar a nossa atenção ou em algum pensamento, ou em algum passageiro desconhecido e que tenha características peculiares. Tentamos radiografá-lo e imaginar-lhe uma vida, tornando-o assim um passageiro do nosso pensamento. A partir dessa altura já não se encara o outro como um outro, mas sim como uma personagem criada por nós num romance imaginário. É um exercício estimulante.

Mas mais estimulante ainda são as paixões metropolitanas, aquelas que duram os dez minutos que o metro demora a chegar da Baixa-Chiado a Sete Rios. Por vezes, deparamo-nos com mulheres que através de um gesto, de um trejeito ou de um olhar materializam aquele je ne sais quoi que não sabemos o que é, mas que nos agrada. E aí, começamos a imaginar tudo o que poderia ser mas nunca será, a cruzar e a desviar olhares. É como se contemplássemos uma obra prima que nunca será nossa, porque nunca sairá do museu. Esses instantes fazem-nos sonhar... e há quem diga que é bom sonhar e eu acredito.

Saídos do metro, a imagem desvanece-se e a paixão instantânea dissolve-se. Nunca mais nos lembramos dela, a não ser que tenha havido um olhar sorridente cravado na memória até sairmos da estação. Paixões subterrâneas que se apagam quando chegamos à superfície.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Diz que este blog já proporcionou momentos de excelência

A gasolina, do Flor da Palavra, parece que teve um daqueles momentos de insanidade temporária e resolveu galardoar aqui o Pensamentos SGPS como "um blog de excelência", que se destaca - e cito - "pelas palavras, pela música, pelas reflexões, pelas imagens, pelos desafios, pela solidariedade, pela vida partilhada". Parece que a iniciativa partiu do http://momentusmomentus.blogspot.com/. Eu por cá, apesar de continuar a achar que no futuro ela poderá alegar insanidade por esta decisão, agradeço a generosidade da Gasolina.

E parece que eu também conheço alguns blogs que se enquandram naqueles requisitos. Basta consultar a lista de links. Todos os que lá estão merecem esse reconhecimento (não sei se os posso nomear todos, porque não sei muito bem como funcionam estas coisas, mas é essa a minha vontade e dizem que a vontade pode muito e eu acredito).

terça-feira, 10 de julho de 2007

Inédito: o autor deste blog perde a cabeça e tenta fazer um sucedâneo de poesia

Eu quero que saibas que sem ti
Não existe céu nem terra,
Não existem estrelas nem mares,
Não existe fogo nem água.

Quero que saibas que sem ti
Não existe beleza nem afectos
Não existem lágrimas nem sorrisos
Não existe felicidade nem saudade.

Quero que saibas que sem ti
Não existe vida nem morte,
Não existe crime e castigo.
Não existe amor. Não existe ódio.

Quero que saibas que sem ti
Nada existe

Mas falemos de nós,
De nós em tempos onde não existem plurais.
Falemos de olhos,
Mas estamos em tempos onde não existem olhares.

Falemos de amor,
onde o chão não se pisa
o céu não se vê
as folhas não caem
o mundo não é
o som não se ouve
o mar não se cheira

Falemos de amor
Façamos amor
Na busca de nós
Querendo sentir
O que não se sente

Sentir o vazio do que será
Esperar por um amanhã que não chegará
Para quê sentir o que nunca se irá sentir
O que nunca se irá viver
Preso ao erro
Preso ao que não existe
Preso a um absurdo…

Quero que saibas que sem ti
Não existe vida nem morte,
Não existem a saudade e o carinho.
Não existe amor. Não existe ódio.

Quero que saibas que sem ti
Nada existe.

domingo, 8 de julho de 2007

Retratos de uma cidade impossível de retratar

- E é nessas alturas que é necessário acontecer o insólito para descentrarmos a nossa atenção de nós próprios e interagirmos com o mundo…

- Concordo perfeitamente… Ainda ontem assisti a um episódio insólito que teve o efeito que descreveste há pouco. Queres que te conte? Então foi assim… Ia pela rua quando me deparei com um músico… Só que o músico não tocava e cantava horrivelmente mas era, sem dúvida nenhuma, um músico. Tinha um microfone de madeira e, em vez de guitarra, usava uma simples tábua minimalista e, apesar de não haver cordas para fazer acordes, o músico parecia estar mesmo a fazer uma qualquer espécie de alquimia. Cantava com a voz esfarrapada, exprimindo o corpo como se fosse uma pop star. Não tem piada? Não era a isto que te referias?

in Café por Acaso

terça-feira, 3 de julho de 2007

O texto medieval da semana (tentativa de criar um diálogo de despedida entre mestre e discípulo)

Recebi a minha educação de um sábio irmão de minha mãe. Godofredo era um monge que me recebia num mosteiro nas cercanias de Clermont. O preceptorado de meu tio iniciara-se tinha eu cinco anos, findando-se quando atingira o meu décimo terceiro aniversário. Recordo-me do nosso último encontro enquanto mestre e discípulo. “Raimundo, temo que os meus humildes ensinamentos cessem brevemente…”. Lembro-me de ter colocado em Godofredo um olhar inquisitivo, raramente dialogava com ele através de palavras; a palavra era algo que exigia demasiada sabedoria para poder manuseá-la com meu tio. “Os teus olhos interrogam-me… sempre me interrogaram desde que te comecei a falar do latim, da sagrada doutrina de Deus, das leis que sustentam o mundo… és muito curioso rapaz, muito curioso…”. Sempre que meu tio-monge se esquivava dos meus silêncios inquisitivos o meu olhar adquiria uma tonalidade que enfatizava a curiosidade. “Pois… sabes meu rapaz, recordas-te de te ter falado de um grande homem? Recordas-te de te ter falado de Bernardo? Claro que te recordas… Pois bem, juntar-me-ei a ele no Mosteiro de Clairvaux.”

À revelação seguiu-se um largo silêncio… Meu tio-monge cogitava a melhor maneira de estruturar os seus pensamentos de forma a poder partilhá-los. “Sabes Raimundo?”. Encolhi os ombros como que suplicando para que ele respondesse à sua própria questão. “O homem caminha sempre para a sua perdição e sabes porquê? Porque não se limita a possuir e a querer possuir o entendimento das coisas. Se bem que o valor moral do desejo de se adquirir o entendimento de algo seja discutível, não é esse desejo que impele o homem para um fim moralmente reprovável. Repara nos animais; são livres de pecado porque se limitam a contemplar e a viver a vida que Deus lhes deu. O homem busca o entendimento das coisas e, pior que isso, o desejo de possuir essas mesmas coisas. Ao homem não lhe basta perceber o que o rodeia, necessita de dominar o que o envolve, reclamando o que pensou entender como seu. Mas o que é não pertence ao homem, pertence a Deus, e o desejo de se assenhorear do que nunca poderá ser seu é um sacrilégio. Além disso, o homem, mesmo quando pensa que possuiu qualquer objecto ou qualquer pensamento, nunca chegou a possuir coisa alguma. Ao homem não lhe basta conhecer, tem de se apropriar do que conhece e subvertê-lo para poder reclamá-lo orgulhosa e soberbamente como seu. Mas engana-se, pois a posse é ilusória e pecaminosa”.

Ambos reflectimos sobre as palavras e os seus sentidos. Germinava uma pergunta em mim que o silêncio não podia comunicar. “Mas há sábios que transformam pedra em ouro, subvertendo dessa forma as características e as qualidades que Deus deu às coisas”. Godofredo coçou o queixo.

“Não Raimundo, não há homens que consigam transformar pedra em ouro e, mesmo que o conseguissem, o ouro continuaria a ser simplesmente uma pedra, sendo que a mutação da natureza das coisas seria apenas ilusória. Os únicos homens que têm poder para dominar o que entendem não se atrevem a fazê-lo, porque são verdadeiramente sábios; a sua sabedoria ensina-os a contemplarem apenas as coisas e a testemunharem as manifestações divinas, evitando a tentação de se proclamarem senhores de determinada verdade… Estes salvam-se.”

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Ab urbe condita


Afinal a "loba do Capitólio" é alemã e o Rómulo e o Remo são polacos.

domingo, 1 de julho de 2007

Memórias de um velho sobre a sua juventude

Naquele tempo desejava descobrir-me… para o fazer teria de aparecer uma outra existência que afirmasse a necessidade do ser de um eu, visto que este não se consciencializa de si sem se confrontar com um outro. Por vezes, desta necessidade brotam situações complexas, nascem vivências e sensações que não cabem nas palavras nem na faculdade que nos foi concedida (ou que conquistámos) de expressar e comunicar objectos concretos e abstractos. Quando se é jovem deseja-se algo indefinido, etéreo e o desnorte aparece fruto da não visibilidade do que se deseja. Constrói-se um universo eidético que não possui ordem porque não se consegue objectivá-lo devido a uma ténue mundivivência… deste problema surge a necessidade de encontrar um outro, para o qual se transmuta o que se deseja idealmente. Encarnamos os nossos desejos na figura de um outro permitindo que o amor, ou algo que se lhe assemelhe, floresça.

Nesse Outono eu atravessava esse processo, podendo dizer-se que me apaixonara. Não… reflectindo bem, constato que não se tratava de amor nem de paixão, era, isso sim, um exercício mental que concentrava os meus desejos no corpo de uma mulher. Dulce… a expressão que mais se te adequa é aquela que foi amada sem o ser realmente… Não importa, o que interessa é que naquela altura eu acreditava mesmo amar-te… contemplava-te… procurava os locais onde a tua presença enchesse o espaço… observava-te numa doce sucessão de momentos. Fui feliz assim, amando-te sem tu o saberes.