terça-feira, 24 de julho de 2007

Crónica de um cerco medieval e infernal

Continuação do Assassino da Lama

O Jovem, filho do Gordo, cercou Vitry. A fisionomia das pessoas evoluíra de medo para pânico. Continuava alheado ao que se desenvolvia à minha volta e mortificava-me pela fome. Não, eu não era digno de comer os mantimentos que escasseavam às pessoas. O meu olhar recaía constantemente sobre as pedras dispostas no chão, tentando perceber-lhes uma vontade que me permitisse afirmar que fora uma pedra que assassinara por sua vontade e que não fora a minha vontade a matar através de uma pedra. Inútil…

A situação em redor de Vitry parecia complicar-se. As defesas da cidade revelavam-se demasiado frágeis para deter a impetuosidade do Jovem. Finalmente, tomava consciência do que se passava à minha volta e pela primeira vez questionei-me: “Será a morte bem-vinda?”. Não, não podia morrer ali, era demasiado fácil morrer e não viver com a culpa a mortificar-me a alma. Terá sido esse o meu verdadeiro pensamento, ou seria apenas um pretexto para lutar cobardemente pela sobrevivência? Todos nós nos enganamos a nós próprios…

Pensei em evadir-me da cidade, mas com toda a certeza seria impossível escapar-me por entre o cerco do Jovem. As pessoas mais frágeis refugiaram-se na igreja, mas pareceu-me demasiado cobarde e impuro partilhar um abrigo divino, quando albergava em mim recordações de acções sacrílegas. Ajudar os locais e lutar? Não, não podia morrer (ou será que não queria?). Escondi-me num estábulo e cobri-me de feno para me ocultar de qualquer perigo.

As tropas de Luís entraram na cidade chacinando as forças resistentes. Incendiaram as muralhas e o fogo propagou-se às casas e das casas à igreja. Os gritos apocalípticos abafaram as preces aflitas, o ar fora invadido pelo cheiro da madeira queimada. O meu coração pulava e bátegas de suor percorriam o meu corpo. Ao cheiro da madeira ardida juntava-se-lhe um outro que tornava a respiração difícil e horrível – o da carne consumida pelo fogo. Os gritos tornavam-se-me imperceptíveis silenciados pelo turpor em que o meu corpo entrara. Fugi do estábulo, visto que o meu esconderijo principiava a ser consumido por labaredas dançantes. Dirigi-me para a rua e deparei-me com um cenário infernal: grande parte da cidade ardia, incluindo a igreja onde milhares se haviam refugiado.

Naquele momento todos os meus pensamentos cessaram, o omnipresente remorso fora para não sei onde e o mundo parou. A minha visão abarcou soldados mortos, espalhados pelo chão como pedras inertes. Permaneci numa quietude intemporal, estático e horrorizado.

As tropas reais passavam por mim, mudas, ignorando-me. Nos rostos dos soldados percebia-se um horror que os tornava cabisbaixos apesar do triunfo. Perguntei a um deles apontando para a igreja “Eles estavam lá dentro?”. O homem acenou afirmativamente com a cabeça e prosseguiu a sua silenciosa marcha.

7 comentários:

Márcio disse...

É impressionante a tua facilidade num texto que parecia acabado e dar a volta por cima... Parabéns!
Escreves fixe… tens uma boa imaginação!

Diogo disse...

Você devia mesmo escrever um livro.

hfm disse...

Gosto destes textos e gostei de ler o editorial.

Anónimo disse...

Resgistrando minha passagem por aqui...

Muito bom! Parabéns!

abrç

Gasolina disse...

Deixaste-me lá. Talvez o corpo encoberto por uma madeira que ainda fumega ou vitima de pilhagem...

Leonor disse...

E ainda dizem que algo macabro afugenta as pessoas. Muito pelo o contrário, prende à leitura

beleza de mulher disse...

arre porque tens de escrever tanto agora tenho sono amanha leu