segunda-feira, 16 de julho de 2007

Retratos de vidas impossíveis de retratar

– Já não nos víamos desde aquele dia em que fomos às sortes…

– E em que as sortes separaram as nossas vidas…

– Ouve lá… Sempre é verdade aquela história que o pessoal contava?

– Que história?

– Que partiste um braço de propósito para não ir à guerra?

– Isso é uma história tão real como as histórias da nossa infância…

– Como assim?

– Sei lá… por exemplo, lembras-te daquela história do Domingues?

– Se me lembro pá, se me lembro… Diziam que o gajo tomou banho numa lagoa da serra em pleno Inverno só para poder afirmar que a água estava fria…

– Exacto… Estiveste lá? Viste?

– Não…

– Eu também não…

– E?

– Quer dizer que não podemos saber se a história é realmente verdadeira…

– Onde é que queres chegar com esse palavreado?

– Que ninguém pode saber se eu parti um braço propositadamente para não ir à guerra…

– Sim está bem… Mas é verdade ou mentira? Conhecendo-te como te conheço sou capaz de jurar que é mentira…

– Mas é verdade…

- Verdade? Ó Castro, não pensei que fosses gajo para fazer isso…

– Também nunca pensei que fosses gajo para ir à guerra só porque sim…

– Eh… calma aí…

– Vamos mudar de assunto… não nos víamos para aí há trinta anos e devemos ter assuntos mais divertidos para partilhar.

– Tens razão… mas fugires da guerra… como é que aguentaste ficar aqui e saber que os teus camaradas estavam a morrer em África? O Brandão, o Costa, o Melo, o Magalhães, o Silva, o Fernandes, o Gama, até o duro do Domingues… ficaram lá todos e tu aqui a assistir a isso, sem fazer nada?

– Talvez tenha sido o acaso que me fez ficar…

– Badamerda para o acaso… não vou nessa cantiga. Se fugiste deliberadamente da guerra foi por opção, não por acaso. Se tivesses tido o azar de nascer sem um tomate aí sim seria um acaso… mas tu optaste por não ir à guerra e por deixar morrer os outros sem ti… tu optaste…

– Talvez tenhas razão. Mas encontrarmo-nos depois de todos estes anos foi um acaso…

– Sim, mas isso não importa, isso não vai mudar as nossas vidas…

– Viste-os morrer? Aos nossos? Ao pessoal da nossa terra?

– Só ao Domingues e ao Costa… Os outros não estava com eles… Ainda hoje sonho com isso… O Domingues e o Costa. Lembras-te quando fomos com eles roubar o vinho ao vigário?

– Se me lembro… bem divertido e foi bem feito…

– Pois foi… o vigário era um grande filho da puta… o vigário é que devia ter pisado a merda da mina que o Costa pisou…

– O Costa morreu por causa de uma mina?

– Ele e o Domingues… Estavam a disparar contra a gente e desatámos a correr para um sítio onde nos pudéssemos esconder. O Costa colocou a pata em cima de uma mina e parou. Ficámos todos em pânico… sabes o que é que o Domingues fez? Tu sabes como era o Domingues… mandou-nos continuar a correr e foi pelo meio do fogo cerrado até ao pé do Costa…

– Também fugiste?

– Eu não fugi… só procurei um local mais guarnecido para poder cobrir o Domingues… Eu não fugi, nunca na minha vida fugi a nada… O Domingues tentou desarmadilhar a mina… e o Costa ali quietinho como a estátua do Cristo-Rei e as balas a passar de um lado para o outro. Estávamos todos a rezar para que o Domingues conseguisse tirar dali o Costa… Depois uma bala atingiu o Costa e buuuummm… ficaram os dois esfrangalhados…

– Porra… Ao menos tu safaste-te!

– Safei-me mas não fugi… nunca fugi…

– Claro…

– Tu não sabes o que aquilo foi… os gajos que não estiveram lá não podem saber… podem escrever-se muitos livros e fazer muitos filmes que os gajos que não estiveram lá nunca poderão saber o que aquilo foi…

in Café por Acaso

13 comentários:

Leonor disse...

Um texto repleto de mentiras e verdades. Quando e que será que falamos realmente a verdade para com os outros e eles nos dizem a nós?

Gasolina disse...

Diálogo tipico entre dois amigos que não se encontravam há muito. Resumir no braço partido e no esconderijo da não fuga os percuros de vida que levaram. A seguir viríam as madrinhas de guerra; algumas delas esposas de um que viu dois morrer.

...muito bom.

zetrolha disse...

Mentir sob o efeito da vergonha.Não quer que o amigo ausente pense que ele continua o mesmo esterco de pessoa de uns anos atrás.

vieira calado disse...

Pois acredito que não é possível com palavras, descrever o horror duma guerra.

beleza de mulher disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
beleza de mulher disse...

tu não fugiste de la pois mas não acredito eu não estava la para ver se estivesse dizia que era verdade looool

beleza de mulher disse...

tens banana quente no meu blog querido passa la hehehehhe

blue disse...

não há de facto palavras ou imagens para o horror da guerra. porém este diálogo tão provável bem fala desse medo visceral que a morte causa.

obrigada pelo comentário que me trouxe aqui.

borrowingme disse...

a guerra não guarda nada de bom para ninguém... nem para lá anda, nem quem é apanhado no meio...
bem escolhido!
bjs

Anónimo disse...

Como diz o ditado: Só sabe o que se passa no convento quem lá está dentro. Quem não esteve na guerra não pode saber ou sequer fazer uma ideia aproximada. Tudo de bom

Mateso disse...

Um documentário de uma geração.
relembrei.
Bj.

eskisito disse...

Gostei da questão do fugir á morte...eu seria capaz de partir um braço e muito mais...que se f**** as guerras dos outros.

S* disse...

Interessante! Recentemente estive num congresso dedicado à perturbação de stress pós traumático em ex-combatentes da guerra colonial. A maior parte nem são ex-combatentes, pois travam diariamente duras batalhas com as recordações e os fantasmas do que por lá viveram. Vi a revolta deles, a angústia, os medos, as culpas, nos discursos e nos desabafos.
E este texto, "repleto de mentiras e verdades" como Leonor Branco disse no primeiro comentário, espelha essa necessidade de desabafo, de culpa, de responsabilidade e de acusação: "eu vivi, eu sofri, eu assisti, eu lutei e eu também fugi ou tive de fugir. e agora, quem me apoia?"
Um tema ainda muito actual!
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