terça-feira, 12 de junho de 2007

Crónica de uma noite de Santo António

Começa tudo no Marquês de Pombal. Desce-se a Avenida a acompanhar os que marcham asfalto abaixo, elas com manjericos na cabeça, eles agarrados a um ferro enfeitado que não sei como se chama na gíria das marchas, cantando versos numa melodia sempre igual acompanhada por batuques também eles sempre iguais. Eu, mochila carregada de cerveja e espírito sedento de bebida. A caminhada avança e o relógio também. No Rossio as mulheres com manjericos na cabeça e os homens que estiveram agarrados a um ferro enfeitado estão descalços, com dores nos pés, de tanto martelarem no asfalto da Avenida. Eu, mochila menos carregada e espírito mais reconfortado.

Contorna-se a colina coroada por um castelo. Caminha-se perto do rio. Aparecem pessoas saídas sei lá de onde (terá sido do Tejo?) que congestionam as ruas. O cheiro da sardinha assada, a raínha da época, é rei e possui os magotes de gente penetrando-lhes nos poros da roupa e da pele. Eu, mochila quase vazia e espírito quase cheio.

Sobe-se a custo a colina do castelo, esbarrando nuns, noutros e em mais outros. A mochila vazia, o espírito pleno e os olhos a sofrerem de uma miopia alcoólica que desfoca os rostos das pessoas que vêm e vão, como as ondas eternamente a rebentar contra a areia e contra as pedras, e isto não é em sentido figurado porque já há muita gente a esbarrar nas paredes. As ruas estreitam-se e o congestionamento torna-se mais evidente. Se houvesse agora um terramoto que deitasse as casas da colina abaixo seria como se rebentasse um dique que controla uma infinidade de gentes. Eu, já sem mochila e com o espírito a teimar na sede apesar de já estar com o depósito cheio.

Galgada a colina, ultrapassada Alfama, paro na entrada do castelo. Os sons agora já me aparecem abafados, longíquos até, e o cheiro a sardinha já se tornou imperceptível de tão evidente que é. A miopia agrava-se e tento adivinhar os contornos dos rostos das gentes e gentes que vêm e vão.

Chego a casa sem nenhuma memória do tempo e do espaço percorrido na chegada a casa. Acordo de manhã, com dor de cabeça, obviamente. A roupa a tresandar a sardinha. Procuro os óculos, coloco-os e a miopia grave regressa. Retiro os óculos, aponto-os contra a luz. Estão cheios de gordura de sardinha. Vou buscar o detergente para o fogão e limpo os óculos. Finda a delicada operação de limpeza, o mundo já se me mostra outra vez nos seus contornos normais, mas a dor de cabeça não passa. Este ano fiquei em casa... é que já não tenho detergente para o fogão e não consigo passar um dia sem ver o mundo.

10 comentários:

Mulheka disse...

Opá, não me falem em Santos! Estou aqui eu, deprimida em casa porque queria ir lá e não posso. Isto de ter as economias curtas não tem raça nenhuma!!!!
Essa foi a tua aventura do ano passado? Tou a ver o filme ahah.
Eu nunca fui aos Santos, apesar de ser algo a que quero muito ir. Creio que haja uma força maior que me impede... o ano passado iamos a caminho dos Santos, quem ia a conduzir não viu a curva e fomos contra um passeio... jante fora, o pneu tinha que ser mudado. O macaco não funcionava. Pedimos ajuda a um taxista. Começou a chover, quando finalmente lá chegamos não havia ninguém! Esto ano foi o não ter dinheiro nem para cantar um cego... vamos lá para o ano que vem...

Marta disse...

Eu sempre fui aos santos, fiz o mesmo percurso que tu, sem mochila, jantava sempre por alfama, mas cheia de dores nos pés. No dia seguinte acordava já o sol se tinha posto, não via o mundo e não tinha problemas com os oculos ( pq fiz operação aos olhos ):). Este ano também não fui, foi o primeiro ano que fiquei em casa e curiosamente, seja ou não da idade, não sinto falta!

Laurentina disse...

xi patrão!!! Quem gostava de ter ido a esse batuque era eu porra !!!
Pela primeira vez estou a viver perto dos santos populares e não vou ver como é para contar como foi...Isto de contingências da vida é uma grande merda.
Em Viana tinha que percorrer 50 km para poder ir a Braga ou 70 para ir ao Porto aqui só tinha que percorrer 5 e tunga fica em casa que é democratico ou então montasses acampamento na avenida ás 4 da tarde !!!
M E R D A com todas as letras!!!


Para ti um beijão grande

Ácido Cloridrix HCL disse...

Mas amanhã é FERIADO,,,, viva,,, plo menos isso né????

Andreia disse...

Isso é que foi uma animação!

Para estes lados é mais os S. Pedro e o S. João.

Anónimo disse...

Em primeiro lugar os meus agradecimentos pela visita e coment.
Que bela descrição de uma noite de Santo António!
Nunca assisti as festas dos santos populares em Lisboa e só uma vez assisti ao S. João no Porto. São as consequencias de um pirata viver numa ilha.

Rafeiro Perfumado disse...

Ontem, pela primeira vez em 35 anos, convenceram-me a ir para os santos. Depois de 94 minutos à procura de lugar para estacionar, acabámos por ir jantar à Trafaria. Nova tentativa em ir aos santos. Quando demos por nós estávamos na Carruagem, em Caxias. Passo seguinte: ir ver o mar, à Ericeira. Consegui safar-me...

L. Romudas disse...

Retribuindo a visita. Gostei mesmo muito do texto. Parabéns. Não gosto dos Santos, mas vistos assim, alcoolicamente desfocados, não me parecem mauzinhos de todo.

astuto disse...

Gostei do texto. O que Lisboa tem de mais bonito são os habitantes dos bairros pitorescos, as suas ruas estreitas, e as suas tradições típicas...

Bons Santos!

sapiens disse...

Quanto a estas festarolas só me ocorre dizer uma coisa: UMA SARDINHA A 1,80€?!!! livra, ainda bem que naõ gosto de sardinha.