quinta-feira, 7 de junho de 2007

Excerto de uma reunião dos Alcoólicos Anónimos

"Não sei muito bem por onde começar, já nem sequer me lembro muito bem quando comecei a beber e porquê… bem, talvez me lembre, talvez tenha apenas receio de o dizer, de o recordar. É claro que durante a minha juventude tive aquelas bebedeiras com os meus amigos, mas essas não contam, não são essas que me estão a matar, que me estão a fazer desaparecer, não são essas que me afogam em mim, não são essas que me corroem como um cancro fulminante… não são essas, não são…

O problema é que comecei a beber como quem não quer a coisa, como quem se sente vazio e procura algo, o que quer que seja, para se sentir um bocado menos afastado do sentimento de pleno. Talvez me tenha tornado alcoólico porque todos os sentimentos que pensava existir não passavam de meros pensamentos, sem concretização na realidade. O amor, o que é essa merda? Um receptáculo colocado no meio das pernas abertas de uma mulher, de uma mulher que abre as pernas por rotina, frígida como uma falésia de mármore, que conta as moscas que estão no tecto, que se está a cagar para o que tu sentes ou deixas de sentir? O amor não existe… a amizade, treta, treta, treta, treta, treta…


Um gajo desilude-se com as merdas e entra numa espécie de vácuo niilista ou o raio que o parta e adere à primeira seita que nos bate à porta… neste caso a seita foi o álcool. Sinto-me bem quando bebo e quando acabo de beber, sinto-me péssimo antes de beber. Quando bebo sinto que estou a fazer algo que, de certa forma, acaba por me preencher, depois de beber sinto-me novamente uma criança que acredita em tudo o que lhe dizem, acredito novamente que as coisas podiam ser perfeitas, que a plenitude está perto, que o que não foi podia ter sido, que a felicidade existe e que estou a um pedaço de a conseguir… mas há sempre uma voz que te diz: “falta-te um bocadinho assim” e caio naquela espiral que nos faz vomitar, que faz o cérebro boiar no nosso crânio e por aí adiante…

Das poucas vezes que estou sóbrio sinto que o processo da alcoolização não passa de uma rotina tão estúpida e maquinal como um abrir de pernas robotizado…

Penso que é tudo…"

5 comentários:

Mário Lisboa Duarte disse...

Meu caro rb,

A sua escrita quase que nos remete para a do RUI BARREIRA ZINK. Assim lucidamente incisiva e cheia de nuances. Creio que a resposta ao seu comentário está na própria pergunta-resposta que nos lança. Deste modo, "pode existir uma maioria marginal, onde todos se sentem à margem mas estão unidos no centro de uma ideia que é estar à margem".

Mário Lisboa Duarte

Mário Lisboa Duarte disse...

Acrescente-se:

Ir com esta merda para a frente

porque somos uns desgraçadinhos e é a única coisa que sabemos fazer. Acreditamos que nisto (mas só nisto) somos muito bons. Conhecer marginais de outros meios artísticos que se possam adaptar aos nossos propósitos
de modo a devolver a este país a loucura saudável pela qual nem sempre foi reconhecido. Depois de conseguido este feito podemos morrer em paz. Na miséria

se for preciso.

Nilson Barcelli disse...

O álcool é um problema difícil de contornar para um alcoólico. Mas não é impossível.
Gostei do teu texto. É de um realismo desconcertante.
Um abraço.

linfoma_a-escrota disse...

Bebi atónito a garrafa sozinho,
foi como margarina a escorrer castidade
tapando as falhas no tronco da palmeira
que, de súbito, se transformará em pedra
e, mais tarde, quererá outro suco colorífico
para as truculentas engrenagens do humor
se descontrairem e sobreviverem a prumo
os não lavrados cultivos de pousio coado.

Acontece e gaguejo a tropeçar, cocoba,
às vezes, sem saber ou quando alguém
faz anos quebro tijolos com os caninos
e acordo maquilhado, vestido de marinheiro
com a tatuagem “a morte não é o fim”
desenhada a lapiseira no escroto rosa.

Com a alba cantada vinda do celeiro
pus-me a pé em direcção à estação,
num coreto de circo, rodeado de caganita
de pomba e minha mochila revistada,
ouvi a memória curta magoar um cãozinho
de orelhas arrebitadamente estrábicas,
devido ao permanente pânico que deve
ser estar habituado a ser alimentado
por tamanha besta selvagem e indomável.

Ainda hoje se vinga dos maus-tratos
que o fascismo lhe infligiu, traumatizado pelos
homicídios aos camuflados inimigos políticos,
em cada relance azarento, quando se cruza
com o vidro da loja de artesanato, vê-os.

Viciado a omnipotentes direitos solitários,
é o cozinheiro colonial sem culpa, sensibilizado
para a ignorância, agora vende estórias de graça
retidas nos pulmões dos pormenores perdidos,
grave comunicação incomodativa, somente interesse
por chaminé ilegal, de poliester, inocente, um dia
expande-se na firme trela da decisão que
já actua sozinha, emperrada hipocondria, escalando
sempre a mesma duna moçambicana, lá adormeceu
em choque, irradiando olhares distorcidos
a inalar o carvão das baionetas enferrujadas,
foram as visões de verdade da criança adulta
relembrando sua sofregidão paralizada em Sines.

A digestão foi interrompida pela melancia
do minotauro em guerra, delira com contacto
que o alucine da realidade até à campainha das
flores de beladonna, brancos pimentos que boiam
a pedido e ornamentam nosso licor que aceita
mas receia, atento à incapacidade cognitiva,
enquanto que, o cachorro Pirata que o acompanha
olha o vazio saturado, tentando desfocar
as vistas iluminadas pelo candeeiro fundido
de sua desistência, jovens em férias ouvem
rádio no bar em frente e encevadam a liberdade,
sem saberem do passado reaccionário do edifício.

Só com quem todos gozam e evitam falo eu,
mais vale a piadas farpas que despovoam
por honra à segurança, rotulando com severidade
sorridente, para ver se me insiro nas afinidades
de camisas bem parecidas e borbulha espremida,
aqui deixado à deriva descobrem-se conteúdos
inesperados, a dolorosa resistência que assombra
catacumbas de camaradas perdidos à floresta,
exasperei escutando labaredas oclusas de esperança
pois, clama por ferrolhos endógenos cerrados
que nenhuma candeia de vergonha contemporânea
pretende tão subterrânemente desenterrar, será que
mais valia ser peremptório e exclamar, crispado,
outra violência típica que recebe mal se aproxima:
“Desaparece daqui velho louco chôcho, estou
ocupado, cheiras mal e acabei de me perfumar!”


in QUIMICOTERAPIA 2004


WWW.MOTORATASDEMARTE.BLOGSPOT.COM

Anónimo disse...

pseudo alcoólico