A rua estava inundada, enlameada, perdida no esquecimento de todos os que por lá não passavam. Umas dezenas de miúdos dirigiam-se para a escola… era mais um dia invernoso em que a imposição de aprender os obrigava a levantar da cama de manhãzinha, bem cedinho, ainda o dia não irrompera pelas trevas nocturnas. Agasalhados e munidos de guarda-chuvas atreviam-se a romper o frio à procura do saber. Uns faziam-no de livre vontade, mas a maior parte nem por isso. As botas escuras acastanhavam-se com a lama… a autarquia ainda não se lembrara da necessidade de pavimentar a rua.
Das dezenas de miúdos que se dirigiam para os edifícios da sapiência, um deles revolvia-se pela lama como um porco numa furda. Esquecido por todos os outros fora atirado ao chão por alguns deles. A roupa que a mãe lhe preparara com diligência conspurcava-se na terra barrenta. A face salpicada de sujidade parecia permanecer impassível, séria e fria, num sentimento de quem nada podia fazer para mudar o estado das coisas. No entanto, não era bem o sentimento de impotência que o absorvia, mas sim a consciência de que as coisas eram assim e não valia a pena o trabalho de as tentar mudar. Ergueu-se como se nada se tivesse passado… a melhor forma de nos alhearmos do que nos humilha é fingir que essas coisas são nada. Verificou o estado da mochila… a sua preocupação centrava-se apenas na possibilidade da lama ter penetrado nos livros e nos seus cadernos de poesia… sim, porque para ele não valia a pena ter cadernos todos abonecados para as disciplinas. Talvez pouca coisa valha mesmo a pena… mas não querendo contrariar o adágio de um poeta coloco já aqui um ponto final neste assunto. Isto no fundo é preguiça, mas decerto que todos compreendem os preguiçosos… se nada fazem, a possibilidade de fazerem coisas desagradáveis é bem menor. Mais valia que estivéssemos todos quietos… mas toda a gente pensa que a vida se manifesta pelo movimento… enfim, andamos todos enganados e somos felizes com isso. Esquecia-me de referir que a possibilidade que causava a preocupação do miúdo não se realizou…
Timidamente, o miúdo enlameado retomou a sua caminhada para a escola. Estava atrasado… os relógios são implacáveis, nunca querem parar; e mesmo quando algum se lembra de ficar quieto (ou se esquece de continuar a sua marcha inexorável [escolham a melhor opção porque isso tanto se me dá como se deu]) os outros nunca lhe seguem o exemplo. Atalhando conversa, que isto já se está a tornar chato, o miúdo chegou atrasado à aula e ouviu uma descompostura da professora de História.
11 comentários:
O miúdo devia ter pegado no dinheiro que os pais lhe deram para a visita de estudo ao museu da cerâmica e ido a um Macdonalds comer dois hamburgueres e um gelado. Depois de lavar as mãos, evidentemente. O Vasco da Gama e o Afonso Henriques que se cosam.
Em resposta ao comentário: Se o fracasso é tão elevado, devemos fazer as seguintes questões: quem ensina é qualificado? quem aprende detém as condições necessárias? não se trata, a meu ver, de uma questão sociológica, mas de apelo crítico. Jovens têm um estudo inferior ao da época de meu avô, mas o ensino será do mesmo nível? infelizmente sei que não..
A vontade de conspurcar, eis um saber superior ao método. Aos métodos que são bons sim, admitamos, para mais tarde vermos que foram maus. O saber...e o jovem, que personagem interessante, fugiu da vida para uma obrigação monocromática. E sob as vestes do saber todos morremos a saber nada. Não como o velho grego que dizia não saber nada instituindo assim que sabia algo, não, somos reflexos do que se constrói em momentos que sabem bem e que sabem mal, e não há grande saber aí...apenas apalpamos sombras...
Resignação é aquilo que mais odeiamos, no entanto é aquilo que mais fazemos diáriamente perante os obstáculos da vida! O ser humano é averso à mudança, espera sempre que algo mude por milagre! E mesmo quando muda, ainda se queixa, como se o mal conhecido fosse sempre a melhor solução!
E com isso tudo de certeza que o miúdo ficou, pelo menos, com uma história para contar no intervalo.
Eu acho que o pior de tudo terá sido mesmo a descompostura da professora de história, tendem a ser demoradas e demasiadamente explicativas, assim do tipo:"no meu tempo não era assim!!", em que tempo vivem então?, Coitados dos putos...que levam com a sabedoria infantil e prepotente dos adultos.Viva a putalhada!!
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Boa narrativa...és um mestre. deverias escrever um livro, aliás, podes transformar teu blog em livro.
abraços.
Bem jogado... Tantas palavras para dizer que um miudo chegou enlameado e atrasado à escola... Brilhante, como sempre!
Todos nós somos um pouco do miúdo e da professora...eu acho que estou cada vez mais próximo da profesora.
O miúdo aprendeu a resignação de que aquilo que não tem remédio está remediado! Isso não é preguiça nem imobilismo, nem saudosismo de adulto avesso à mudança, é sabedoria, porque tudo tem limites mesmo a resignação
Boa literatura, bons capítulos de um livro, possivelmente autobiográfico: Valeu?
Abraço
A. João Soares
»Do Miradouro»
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