terça-feira, 19 de junho de 2007

O texto chato da semana (exemplo de texto cheio de lugares comuns)

A rua estava inundada, enlameada, perdida no esquecimento de todos os que por lá não passavam. Umas dezenas de miúdos dirigiam-se para a escola… era mais um dia invernoso em que a imposição de aprender os obrigava a levantar da cama de manhãzinha, bem cedinho, ainda o dia não irrompera pelas trevas nocturnas. Agasalhados e munidos de guarda-chuvas atreviam-se a romper o frio à procura do saber. Uns faziam-no de livre vontade, mas a maior parte nem por isso. As botas escuras acastanhavam-se com a lama… a autarquia ainda não se lembrara da necessidade de pavimentar a rua.

Das dezenas de miúdos que se dirigiam para os edifícios da sapiência, um deles revolvia-se pela lama como um porco numa furda. Esquecido por todos os outros fora atirado ao chão por alguns deles. A roupa que a mãe lhe preparara com diligência conspurcava-se na terra barrenta. A face salpicada de sujidade parecia permanecer impassível, séria e fria, num sentimento de quem nada podia fazer para mudar o estado das coisas. No entanto, não era bem o sentimento de impotência que o absorvia, mas sim a consciência de que as coisas eram assim e não valia a pena o trabalho de as tentar mudar. Ergueu-se como se nada se tivesse passado… a melhor forma de nos alhearmos do que nos humilha é fingir que essas coisas são nada. Verificou o estado da mochila… a sua preocupação centrava-se apenas na possibilidade da lama ter penetrado nos livros e nos seus cadernos de poesia… sim, porque para ele não valia a pena ter cadernos todos abonecados para as disciplinas. Talvez pouca coisa valha mesmo a pena… mas não querendo contrariar o adágio de um poeta coloco já aqui um ponto final neste assunto. Isto no fundo é preguiça, mas decerto que todos compreendem os preguiçosos… se nada fazem, a possibilidade de fazerem coisas desagradáveis é bem menor. Mais valia que estivéssemos todos quietos… mas toda a gente pensa que a vida se manifesta pelo movimento… enfim, andamos todos enganados e somos felizes com isso. Esquecia-me de referir que a possibilidade que causava a preocupação do miúdo não se realizou…

Timidamente, o miúdo enlameado retomou a sua caminhada para a escola. Estava atrasado… os relógios são implacáveis, nunca querem parar; e mesmo quando algum se lembra de ficar quieto (ou se esquece de continuar a sua marcha inexorável [escolham a melhor opção porque isso tanto se me dá como se deu]) os outros nunca lhe seguem o exemplo. Atalhando conversa, que isto já se está a tornar chato, o miúdo chegou atrasado à aula e ouviu uma descompostura da professora de História.

11 comentários:

Diogo disse...

O miúdo devia ter pegado no dinheiro que os pais lhe deram para a visita de estudo ao museu da cerâmica e ido a um Macdonalds comer dois hamburgueres e um gelado. Depois de lavar as mãos, evidentemente. O Vasco da Gama e o Afonso Henriques que se cosam.

Henrik disse...

Em resposta ao comentário: Se o fracasso é tão elevado, devemos fazer as seguintes questões: quem ensina é qualificado? quem aprende detém as condições necessárias? não se trata, a meu ver, de uma questão sociológica, mas de apelo crítico. Jovens têm um estudo inferior ao da época de meu avô, mas o ensino será do mesmo nível? infelizmente sei que não..

Henrik disse...

A vontade de conspurcar, eis um saber superior ao método. Aos métodos que são bons sim, admitamos, para mais tarde vermos que foram maus. O saber...e o jovem, que personagem interessante, fugiu da vida para uma obrigação monocromática. E sob as vestes do saber todos morremos a saber nada. Não como o velho grego que dizia não saber nada instituindo assim que sabia algo, não, somos reflexos do que se constrói em momentos que sabem bem e que sabem mal, e não há grande saber aí...apenas apalpamos sombras...

Marta disse...

Resignação é aquilo que mais odeiamos, no entanto é aquilo que mais fazemos diáriamente perante os obstáculos da vida! O ser humano é averso à mudança, espera sempre que algo mude por milagre! E mesmo quando muda, ainda se queixa, como se o mal conhecido fosse sempre a melhor solução!

Catarina Soutinho disse...

E com isso tudo de certeza que o miúdo ficou, pelo menos, com uma história para contar no intervalo.

bela lugosi`s dead (F.JSAL) disse...

Eu acho que o pior de tudo terá sido mesmo a descompostura da professora de história, tendem a ser demoradas e demasiadamente explicativas, assim do tipo:"no meu tempo não era assim!!", em que tempo vivem então?, Coitados dos putos...que levam com a sabedoria infantil e prepotente dos adultos.Viva a putalhada!!

Jay Dee disse...

...

Anónimo disse...

Boa narrativa...és um mestre. deverias escrever um livro, aliás, podes transformar teu blog em livro.

abraços.

L. Romudas disse...

Bem jogado... Tantas palavras para dizer que um miudo chegou enlameado e atrasado à escola... Brilhante, como sempre!

eskisito disse...

Todos nós somos um pouco do miúdo e da professora...eu acho que estou cada vez mais próximo da profesora.

A. João Soares disse...

O miúdo aprendeu a resignação de que aquilo que não tem remédio está remediado! Isso não é preguiça nem imobilismo, nem saudosismo de adulto avesso à mudança, é sabedoria, porque tudo tem limites mesmo a resignação
Boa literatura, bons capítulos de um livro, possivelmente autobiográfico: Valeu?
Abraço
A. João Soares
»Do Miradouro»